sábado, 12 de janeiro de 2013

Pitadas sobre Meu Pai


(dedicadas a meus filhos que, alguns, pouco tempo tiveram para conviver com meu Grande Herói e Exemplo de vida)

1946 - Em Rivera, Uruguai, cidade fronteiriça com Sant’Ana do Livramento, esta no Rio Grande do Sul,  no Restaurante Dona Maria, a Anistia Internacional promove um jantar de confraternização, no qual serão homenageados ex-exilados do mundo inteiro, representados por Carla Hiriarte, famosa escritora chilena.

Gay da Cunha, trabalha no restaurante como garçom, e está presente ao evento, sem que saibam os proprietários quem é ele. Ao final do jantar, ao momento em que chamam a homenageada para entregar-lhe uma corbelha de flores, honraria maior da noite em que se brada pela democracia, esta reconhece José, perfilado frente aos convidados, junto aos demais garçons.

-Quero enviar esta coroa de flores a uma mulher que tem dividido sua vida com um dos mais aguerridos heróis de nosso tempo. Quero entregá-la para que saiba o quanto nós chilenos, espanhóis, brasileiros e tantos outros povos irmãos, que aprendemos a admirá-lo pela coragem com que tem lutado pelo mundo, temos de carinho por este brasileiro que nos dá a honra de estar hoje à nossa frente.

E, para surpresa de todos os presentes, completa:

-Por favor, companheiro José Gay da Cunha, um dos Comandantes das Brigadas Internacionais que lutaram na Espanha contra o domínio Franquista, venha receber as flores. E as leve para a Eugenia, em meu nome e de todos aqui presentes.

Chegando em casa, já madrugada, quando acorda a esposa, José a vê olhá-lo com espanto, como se pensasse que ele havia enlouquecido, para comprar a quantidade de flores que trazia. Conta-lhe o ocorrido e, juntos, sem que os filhos pequenos que dormiam tivessem percebido a cena, abraçam-se e choram.

Mas não choravam tristezas. Eram lágrimas da gratidão, de, mesmo na dificuldade que se viam obrigados a passar, amigos havia pelo mundo, e muitos que os queriam bem e lhes reconheciam o valor pela luta que haviam abraçado.

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1975 - Na LTB, filial Bahia, fui um dia visitar alguns amigos. Conversando com Selma, falou-me de outro amigo seu, dono de uma agência de propaganda, Julgava ser possível conseguir colocar-me. Atendiam clientes fortes, como o Banco Econômico e o Ministério de Comunicações. Ficava na Ladeira da Barra, belo local, quase frente à entrada do Iate Clube, uma vista deslumbrante do mar, principalmente em dias ensolarados. E, em dois dias, lá estava eu a conversar com Rodrigo, seu diretor.

A experiência que trazia comigo, o conhecimento técnico, e a vantagem de ser viajado, ajudaram a chegarmos a um acordo. Era o começo de minha vida de “contato” em uma agência, assim designado o cargo que ocuparia. E, entre outros clientes, menores, me coube atender o Econômico, o que gerou dois grandes sustos, e uma das grandes emoções que passei na vida.
Há um procedimento padrão quando se iniciará um trabalho, representando uma agência de propaganda, junto a um cliente: é enviado um Currículo do novo Contato, para conhecimento e análise por parte da Diretoria que tem por atribuição definir a seleção, e autorizar as mídias a veicular. Não fui exceção.

Contudo, dois dias após enviarem meu Currículo, fui convocado a uma reunião com o Diretor Financeiro Administrativo do Grupo Econômico, sem uma antecipação de motivos que o justificasse. O diretor da agência demonstrava preocupação, estava visivelmente tenso, e um tanto pálido quando me chamou à sua sala: - Victor, você tem algum problema com cadastro bancário? Possui algum protesto? É réu em alguma ação na justiça?
Quando lhe afirmei desconhecer qualquer tipo de problema, fosse um dos citados, fosse qualquer outro, só então, me comunicou o pedido que recebera. E, no dia seguinte, à hora agendada, lá estávamos nós dois, no suntuoso prédio Sede, na Cidade Baixa. Subimos ao oitavo andar, nos anunciamos perante a Secretária, e, poucos minutos depois, fomos chamados a entrar.

Apresentação feita, Zietelmann virou-se para meu diretor e falou: - Por favor, quero conversar particularmente com seu funcionário, Não se incomode, mas nos deixe a sós, Sobre sua mesa, de forma bem destacada dos demais papéis que a ocupavam, estava meu Currículo, cópia de minha Carteira de Identidade encima.
Sentou-se, ofertou-me, com um gesto de mão, uma cadeira à sua frente, esperou que me sentasse, e sem maiores delongas, perguntou: - O nome de seu pai é José Gay Cunha? – Sim, Dr Zietelmann, respondi sem pestanejar. É meu pai. – Este seu pai é o José Gay Cunha, que esteve preso na Frei Caneca, e depois, na Ilha Grande?

Era uma enxurrada de perguntas; - É o que está citado por Graciliano Ramos em seu livro “Memórias do Cárcere”? Que, por um tempo, exilou-se no Uruguai, e que esteve na Espanha a lutar contra o General Franco? É o brasileiro que André Marty nomeou Comandante dos Brigadistas Internacionais, quando estes se retiravam da Guerra Civil Espanhola? Que foi ferido em combate por lá?
Minha mente trabalhava rápido. Ele conhecia praticamente toda a biografia de meu pai. E, por instantes, me passou pela mente o filme de minha infância. – Cuidado, diziam alguns colegas de escola primária. Meu pai falou que ele é filho de um Comunista! – Olha lá. Ele não assiste às aulas de religião. É porque o pai é Comunista! – No meu time ele não joga! O pai é Comunista! E, assim por diante.

Havíamos, eu e meus irmãos, sofrido momentos de perseguição e provocações. Muitas vezes, em reação natural às agressões, que chegavam a ser físicas, fui para casa, literalmente, de cara quebrada. Não havia como escutar tanto desaforo, não havia como manter-se tranqüilo, mais ainda, quando se era, como no meu caso, bastante educado e cordial. Mas, muito cedo, descobri meus limites.
Era difícil, muito difícil, me fazer sair do sério. Mas, quando o conseguiam, apesar de muito magro, franzino, pernas e braços muito finos, tinha um brio que crescera comigo. Agora, estava eu ali, sentado frente a um diretor de um grande banco nacional, na expectativa da seqüência de seu metralhar verbal. Meu maior temor era perder o emprego que custara tanto a conseguir. E que tanta alegria me trouxera. Mas, não era um dia ruim.

– Bem, Victor, vou chamá-lo pelo nome porque você é muito jovem. Tem, certamente, idade para ser meu filho. – Vinte e nove anos, Dr. Zietelmann. – Então é isso mesmo. Eu tenho quase sessenta, e desde meus quinze anos que acompanho passo a passo a vida de seu pai. Tenho, por ele, uma profunda admiração. Li tudo que encontrei pela frente a seu respeito. Conheço Jorge Amado, um de seus ex-companheiros. Li Graciliano e outros. Então, quero lhe dizer uma coisa, Victor: orgulhe-se de ser filho deste homem! E permita-me, agora, dar-lhe um abraço apertado.
Levantou-se, contornou a grande mesa em que trabalhava, e me abraçou, como um velho amigo o faz. Emocionado, retribui seu abraço. E o acompanhei com os olhos a retomar seu lugar. Sentei novamente.

– Olhe “guri”, não é assim que vocês gaúchos chamam os meninos? Agora você tem um compromisso maior comigo: quando seu pai vier à Bahia, você fica obrigado a me apresentar a ele. Quero ter o prazer de dizer-lhe o tanto que o admiro e respeito. Parabéns pelo trabalho. Sendo filho de quem é, você só pode ser um cara correto e competente. E para se lidar com verbas de propaganda, no caso de nosso Banco, um tanto avantajadas, há que se ser valente. É muito dinheiro em jogo. Estaremos juntos, a partir de agora. Vou mandar seu chefe entrar. E dar-lhe parabéns pela nova contratação.
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Entre 1973 e 1975, é acionada uma das maiores operações de “caça às bruxas” pelos militares, que, em todo território nacional, saem em busca de militantes e ex-militantes que ainda usufruíam de certa liberdade de ação. Meu pai, por exemplo, que, por ocasião do golpe, fora chamado para uma sessão de “questionamentos” sobre sua possível participação em ações subversivas, é – literalmente – seqüestrado na Caixa Econômica Federal, aonde trabalhava.
Uma das grandes ironias deste momento é que o Ministro da Justiça, em exercício, a serviço dos militares, é Daniel Krieger, gaúcho, que, em 1930, junto com meu pai, e grande parte de familiares seus, os Flores da Cunha, levara Getulio Vargas ao poder, em levante que se iniciara no Rio Grande do Sul. Além de mantê-lo desaparecido por dez dias, ainda que o soubéssemos preso, sua casa é invadida e, praticamente, destruída por vândalos de uniforme verde oliva.
Entre outros notáveis, Paulo Brossard dispõe-se a falar, em nome da família, para que tenhamos notícias sobre seu paradeiro. Depois de quase duas semanas, José Gay da Cunha é devolvido à vida normal. Sobre seu convívio com aqueles que o aprisionaram e lhe aplicaram torturas, nada comenta. Tinha um lema: “Prefiro não sujar a boca, falando de meus inimigos. Pronunciar seus nomes seria uma forma de homenageá-los, o que não merecem.”
Contudo, algumas atitudes, algumas medidas de resguardo, haviam que ser tomadas. Meu pai pede transferência para Salvador, onde estou morando, e passamos, logo depois, com a vinda de minha mãe e dos três irmãos mais novos, a dividir o mesmo teto. Este afastamento temporário do Sul os irá tranqüilizar um pouco, tirá-los de foco.
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Zietelmann morava em Arembepe, bairro afastado do centro de Salvador, alguns quilômetros após o aeroporto, outrora uma praia que abrigara acampamentos de hippies, e que, com o crescimento imobiliário, transformara-se em região de Condomínios de algumas belas casas, muito junto do mar, espaçosos terrenos, frondosa vegetação e tranqüilidade.
É até lá que vou com meu pai, cumprir a promessa feita em nossa conversa no Econômico algum tempo atrás. Estaciono, descemos do carro, Zietelmann à porta, ainda que de bermudas, mas, vestido elengantemente, como lhe era de costume, abre os braços e fala:
- Hoje completo um ciclo de vida. Um ciclo que retrata a espera de quase cinqüenta anos. Chegue aqui grande Comandante. Deixe que lhe dê o abraço guardado com tanta admiração e conhecimento de suas lutas pelo Brasil e pelo mundo!
Cumprimentam-se efusivamente. Um forte e demorado abraço, com típicos tapas fortes nas costas,  como eram o respeito e a emoção que demonstravam.
- Venham. Vamos entrar e fazer um brinde, que já tenho tudo preparado, e – depois – falo eu primeiro. Tenho inúmeras perguntas e minha aguçada curiosidade que só cresceu desde minha juventude.
Ali, junto aos dois, passei perto de quatro horas como mero ouvinte, assistente privilegiado de entrevista e depoimento, com narrativas detalhadas e fatos e personagens de nossa história, novos alguns deles, mesmo para mim, criado tão junto e tão companheiro. Foi algo como que o desenlace festivo de uma busca e premiação.
E quem mais ganhava era eu, com certeza. Olhar aqueles dois homens, já com boa idade e muita vivência, cada um a seu modo, com os olhos marejados e a voz, por vezes, trêmula, embargada, não querendo sair, fruto das rasteiras que nos prega o coração, é até os dias de hoje um dos melhores “retratos” que trago na história de minha vida.
Durante nossa tarde desfilaram Getúlio Vargas, Osvaldo Aranha, Flores da Cunha, Filinto Muller, Jorge Amado, Luis Carlos Prestes e Olga Benário, Carlos Mariguela, Apolonio Soares de Carvalho, André Marty, Comandante Mor e Herói da Guerra Civil Espanhola, e tantos outros, alguns que, ainda jovens, ficaram no caminho, em território estrangeiro.
Vi desfilarem os Movimentos de 1930, 1932 e 1935, exílio, anistia, o fim do Estado Novo, a implantação da Ditadura que ainda perdurava, Império dos Generais. Acorreram lembranças da Europa, Paris, Madri, Toledo, Barcelona, os Pirineus, etapas dos ajustes de poder pelo mundo, quando um certo Hemingway não passava de repórter cobrindo guerras esparsas.
E quando Picasso, ainda jovem, mas já vivendo na França, pinta Guernica, em registro de um “exercício” da aviação ítalo-alemã. A Segunda Guerra Mundial serpenteava seus primeiros passos. Um grande e detalhado desfile de história, atualidades e perspectivas, sombrias perspectivas, quanto ao rumo que nosso Brasil parecia ainda ter pela frente.
Despedimo-nos, e quando saímos para a Pituba já se insinuava mais uma suave noite baiana. Calados, percorremos o nosso caminho de volta, no silêncio da solidariedade, da cumplicidade e da admiração crescente que eu nutria por este grande homem que foi meu pai, um quixotesco idealista, pertencente a uma raça de corajosos justiceiros que se desfez no tempo.
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A estada de meus pais e irmãos em Salvador foi de tempos serenos, ainda que todos lutassem com a adaptação a novas culturas, um clima radicalmente distinto do que haviam convivido no sul, ora sol escaldante, ora chuva intermitente, mas um conjunto de fatores, por vezes, inóspitos. Principalmente meus irmãos, em escolas com currículos bastante voltados à região, sentiram mais dificuldade para adaptar-se.
Sua volta ao sul, agora para morar em São Paulo, foi uma notícia bem recebida por todos. Para mim, para Victor, meu filho, restou uma fatia de saudade e a falta de suas presenças, principalmente à noite, quando jantávamos juntos e nos reuníamos para conversar, principalmente para escutar meu pai a contar suas andanças e lutas pelo mundo afora, ou escutar minha mãe ao piano, quando nos atrevíamos a cantar, cada um, um pouco. Yuri, então com treze anos, ensaiava os primeiros passos de uma brilhante carreira de cantor.

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