Em 1935/6, meu pai estava, junto com Jorge Amado, Graciliano Ramos, Prestes, Carlos Mariguela, Apolônio Soares de Carvalho, Agildo Barata, Luis Carlos Prestes, e tantos outros, preso na Casa de Detenção Frei Caneca. Olga Benário então grávida de sua filha, que será chamada Anita Leocádia, convive no “inferno” para eles preparado. Logo depois, seria entregue aos nazistas por Filinto Muller (Chefe de Polícia de Getúlio, grande introdutor da Tortura nas hostes brasileiras, e, anos antes, desligado - por covardia - da Coluna Prestes). Era um período de grandes perseguições. Militares, militantes, intelectuais, estudantes, fosse quem fosse que julgassem contra o poder - primeiros passos do Estado Novo, a Ditadura de Getulio - era detido e encarcerado sem direitos de defesa.
Meu pai, José Gay da Cunha que, entre outras coisas, desenhava bem, ajudou a traçar os desenhos das pequenas roupas, que Olga bordava na prisão, enquanto – entre outros fatos marcantes da barbárie – Mariguela sofreu brutais torturas (diz-se que só sobreviveu por se tratar de um “tanque” de tão forte), e Prestes, considerado o chefe da “Intentona”, foi mantido em uma cela “solitária” por tanto tempo, que o grande Jurista Sobral Pinto apelou a Getúlio Vargas, Presidente da República, não eleito pelo voto, para que o liberasse, baseando suas alegações jurídicas na Lei de Proteção aos Animais.
Em final de 36 meu pai e a maioria de seus companheiros são liberados, o que o leva a se exilar – junto com muitos outros, inclusive familiares, como os Flores da Cunha – no Uruguai, de onde, tempos após, parte para a Espanha, como Voluntário, para integrar-se à luta contra as tropas golpistas do General Franco. Na mesma empreitada, viajam Costa Leite, Apolônio de Carvalho, Hermenegildo de Assis Brasil, José Homem Correa de Sá, Elcy e Delcy Silveira, Homero Jobim e outros, que totalizam 41 brasileiros.
Últimos meses de 39, volta à América, derrotados que foram na Espanha, Uruguai novamente. Em Montevideo, trabalhando no Porto, no desmonte de um navio, meu pai conhece minha mãe, através de um amigo comum, o escritor Ivan Correa Lins (se não me falha a memória), quando ela (pianista, e com 19 anos) vai se apresentar na capital Uruguaia. Ainda que se dividissem nos encontros entre a capital uruguaia e Buenos Aires, aonde Eugenia reside, o amor atropela o tempo, e se casam poucos meses depois.
Já 1941/42, primórdios da Segunda Grande Guerra, uma “anistia geral” é anunciada por Getúlio Vargas, convocando todos os brasileiros a retornarem. Meus pais vem para o Brasil, quando ele é preso e enviado à Ilha Grande, então Presídio Político, para cumprir a pena de oito anos a que haviam sido condenados, ele e seus companheiros, por um tribunal que em si já fora uma fraude. E é neste período, ano de 42, que – já com um filho – minha mãe começa a visitá-lo. Aqui aparece a figura de James Amado, jovem e amigo, irmão de Jorge Amado, que a recebe quando vem ao Rio, ajudando-a a se locomover, para poder chegar a Mangaratiba e à Ilha Grande.
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Passam-se muitos anos. Estou trabalhando como Corretor de Imóveis, o ano é 2011, o mês junho. Ainda que trabalhe predominantemente entre os bairros da barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes, dispomos de um esporádico imóvel à venda em Copacabana, na Rua Duvivier. Atendo uma ligação de alguém interessado, uma senhora de nome Inaê, residente em Brasília, em vias de mudar-se para o Rio de Janeiro. Após trocarmos informações que nos situam mutuamente quanto ao solicitado por ela e o que o imóvel oferece, marcamos de nos encontrarmos em Copacabana no sábado pela manhã.
São 11:00 horas, já passam 30 minutos da hora marcada, e Sra. Inaê não chega ao local. Aviso a proprietária sobre seu atraso. E, olhando para a Av. Nsa. Sra. De Copacabana, julgo vê-la. A pessoa que se aproxima bate com a descrição que me foi dada ao telefone. Aproxima-se: - Victor? – Sim, respondo. Inaê? E lhe aperto a mão, quando percebo, ao observar seu braço, que está ferida. Algo leve, como um arranhão, mas que se vê ser recente. – O que houve? Você está machucada! - Nada demais, me diz ela. Cai ao subir na calçada aqui perto. Depois verei o que faço.
- Já a esperei um pouco! Nada disso. Vamos a uma farmácia e, depois, voltamos para ver seu apartamento. Não se preocupe com a hora. A proprietária nos aguardará. Trata-se de uma senhora com idade avançada, é o que lhe falo, e a percebo acatar sem maiores reações. Caminhamos até a farmácia mais próxima, Inaê se medica e – finalmente – efetuamos a visita ao imóvel da Duvivier. Dona Iza, a dona, gentil como sempre, pintora que é, possui um espaço grande em sua casa, que usa como ateliê.
-Gostei do apartamento Victor, me fala Inaê, já no elevador, enquanto descemos à rua. Agora vou combinar com meu marido e marcar outro dia para que ele possa também opinar. E, saindo do prédio, atravessamos a rua e passamos por um vendedor de livros usados, estes espalhados pela calçada. – Sabe Victor? É isto que me encanta no Rio! Esta coisa de cultura, de música, de literatura... veja só, ainda que velhos, ainda que já lidos, mas são livros... e eu curto isto. Leio muito, tenho um tio escritor.
- Bem, estamos então começando a encontrar afinidades. Também li e leio muito, sou de uma família de muitos irmãos, tínhamos biblioteca em casa. E era eu que cuidava dos livros. Gosto de escrever, coisa que aprendi com meu pai, escritor também, e por um bom tempo, cronista político de um jornal do sul. Como não podia usar o próprio nome, escrevia como André Villard. Foi um homem de esquerda. Sofreu perseguições... vivemos no exílio... minha mãe, pianista, e mulher de grande cultura, tornou-se a companheira aguerrida de uma vida inteira. Assim, fomos uma família em que literatura, música e política faziam parte de nosso dia a dia.
Fui interrompido por Inaê: - Estranho Victor, eu nunca havia comentado com ninguém que era sobrinha de um escritor. Não sei porque isto me saiu assim hoje.... resolvi perguntar-lhe então como chamava seu tio. – Jorge Amado, respondeu-me! o que me levou a parar de imediato. – Espere um pouco Inaê! Você é filha do James Amado? exclamei. – Sim, é meu pai! ...agora ela demonstrava certo espanto. – Mas como você pode saber disso? fiquei olhando-a por alguns instantes. O que me vinha à mente parecia um redemoinho de sentimentos e de parte de nossa história, a história de meus pais.
Eu estava emocionado! Minha cabeça rodava buscando datas e nomes. E, só o que me saiu, olhando-a cheio de alegria e estupefação, foi: - Inaê, nós nos conhecemos antes de nascer! ... Já lhe explico. Seu pai está vivo? – Sim, mora em Salvador... casou de novo... sua esposa é filha do Graciliano Ramos, outro escritor.... Não pude deixa-la continuar. – Vou ligar para minha mãe! Era seu pai, ainda rapaz, que em 1942 recebia minha mãe aqui no Rio, quando ela vinha visitar meu pai, preso na Ilha Grande! Isto não lhe diz nada? e continuei: - Graciliano Ramos esteve com eles, seu tio e meu pai, na Frei Caneca... em “Memórias do Cárcere” fala muito de José Gay da Cunha, meu ´pai.....
Em poucos minutos, havíamos ligado para minha mãe, em São Paulo, e Inaê pode falar com ela a respeito do pai, James, a quem não via há quase 70 anos! E, logo depois, Inaê ligou para ele, em Salvador, comentando sobre nosso inacreditável encontro. Ambos tinhamos os olhos marejados e os corações invadidos por uma inédita e repentina felicidade. O mundo é menor do que pensamos. Como podia o destino ter-nos colocado, assim, frente a frente, nós dois, elos afastados de uma longa corrente de solidariedade? Que ventos carregam nossos destinos e os jogam em uma nova cena decorridos tantos anos?
Em Julho, em um sábado, no Restaurante Fiorentina, reunimos nossa família para os 90 anos de minha mãe, nossa Mamita, cujo nome é Eugênia. E ali, no restaurante, filhos netos, sobrinhos, amigos muitos, vivemos um dos momentos mais emocionantes, quando chegaram Inaê e o esposo. Ou quando chegou Victor Biglione, meu primo, filho da irmã mais nova de minha mãe, abraçando-a aos prantos, sem conseguir que lhe saissem palavras para traduzir-lhe tudo que mostrava sentir. Sorrimos, cantamos, choramos todos, nos abraçamos, e festejamos a emoção, grande emoção, de mais um reencontro... de quase 70 anos!
Assim são nossas vidas, amiga Inaê Amado! Quando as sabemos viver, quando somos parte daqueles que nunca abandonam a trilha dos sonhos e ideais. Algo maior existe, que nos mantém próximos, mesmo quando nem sabemos da existência uns dos outros! E constatamos que estivemos, estamos e estaremos sempre juntos! Acredito em energia. Na energia do ideal, na energia da dignidade, na energia da lealdade, na energia da solidariedade, na energia do sonho que não envelhece, na energia da entrega ás lutas válidas, que - somadas - significam sermos mensageiros do amor!
Em Julho, em um sábado, no Restaurante Fiorentina, reunimos nossa família para os 90 anos de minha mãe, nossa Mamita, cujo nome é Eugênia. E ali, no restaurante, filhos netos, sobrinhos, amigos muitos, vivemos um dos momentos mais emocionantes, quando chegaram Inaê e o esposo. Ou quando chegou Victor Biglione, meu primo, filho da irmã mais nova de minha mãe, abraçando-a aos prantos, sem conseguir que lhe saissem palavras para traduzir-lhe tudo que mostrava sentir. Sorrimos, cantamos, choramos todos, nos abraçamos, e festejamos a emoção, grande emoção, de mais um reencontro... de quase 70 anos!
Assim são nossas vidas, amiga Inaê Amado! Quando as sabemos viver, quando somos parte daqueles que nunca abandonam a trilha dos sonhos e ideais. Algo maior existe, que nos mantém próximos, mesmo quando nem sabemos da existência uns dos outros! E constatamos que estivemos, estamos e estaremos sempre juntos! Acredito em energia. Na energia do ideal, na energia da dignidade, na energia da lealdade, na energia da solidariedade, na energia do sonho que não envelhece, na energia da entrega ás lutas válidas, que - somadas - significam sermos mensageiros do amor!
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