CALEIDOSCÓPIO
Romance/Literatura
Brasileira
Cunha/Victor
Aronovich, 1945
Direitos
Autorais Reservados, Rio de Janeiro / RJ 2002
Registro No.
138.960 Livro 222 Folha 495 Biblioteca Nacional
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Este livro é uma homenagem a uma geração de homens que fez a
história de seu tempo, marcando sua trilha pela dignidade de propósitos, pela
autenticidade de seus ideais, pela solidariedade universal que carregavam.
Formaram, certamente, uma raça que não teve nem terá substitutos,
tal a grandeza de seu espírito, a dimensão de seus sonhos, e o inseparável
destemor que lhes foi companheiro.
A nós caberá sempre lembrá-los, com o orgulho de podermos, quiçá,
tentar segui-los, abraçando també m causas maiores, na expectativa
serena de esperar que a história nos reserve um julgamento justo.
De um deles, meu pai, tomei a liberdade de roubar cenas, me
apropriando de fatia maior do que aquela que sempre tive o direito de carregar,
qual seja seu nome.
A ele, José Gay da Cunha, lutador incansável; como portador da
bandeira da liberdade, com muito amor, tenho a honra de ofertar minha principal
homenagem.
Por tudo que nos disseste, por tudo que nos mostraste, por tudo
que, mesmo calado, nos transmitiste em teu exemplo maior, por tudo que sempre
foste, és e serás.
Obrigado Zé!
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Este livro é dedicado a minha mãe, Eugenia, valente e audaz,
companheira na vida, na música, e nos sonhos que sempre traduziu, nas palavras
e nos teclados; a meus irmãos, cuja solidariedade e carinho são marcas
indeléveis que carregamos como herança de nossos pais; a meus filhos, amigos de
ontem, hoje e amanhã, seus companheiros, companheiras e filhos, meus netos; aos
amigos, poucos, que continuaram a caminhar comigo; e ao meu amor, Aninha, meu
refúgio e verdade maior; e, por fim, àqueles que, mesmo os que não conheço, sei
que lutam pelos direitos dos homens.
(1954)O cavalo trotava ágil entre duas
fileiras de seibos, árvore que Ávila trouxera para enfeitar a paisagem por
sugestão de Carla, e que o tempo mostrou estava ela cheia de razão ao
elogiá-la. Davam flores lindas, vermelho forte, contendo uma nesga de amarelo.
Não cresciam muito, abrindo-se mais para os lados com galhos predominantemente
leves, que, com o verde muito vivo de suas folhagens, formavam um quadro de
admirável beleza.
Puxou os arreios obrigando o cavalo a
parar. Apeou. Queria sentar por alguns instantes em um pedaço muito especial do
caminho. Ali, uns metros à direita, feito em troncos, com rústico acabamento,
estava o banco aonde Carla descansava e o observava enquanto ele plantava as
mudas de seibo. Alisou o pescoço do cavalo, em gesto típico de quem tem
intimidade com o animal, batendo-lhe de leve, com carinho mesmo, quase à altura
do peito.
Prendeu os arreios, agora pendentes, a
um galho baixo da árvore mais próxima. Tirou o chapéu, afagando os próprios
cabelos já parcialmente grisalhos e, com as mãos na cintura, punhos cerrados,
olhou em volta e respirou fundo. Soltou o ar bem lentamente.
Com o chapéu bateu nos troncos do banco
como a limpá-lo. Então, sentou-se. Pernas afastadas, corpo dobrado para a
frente, com os cotovelos apoiados nas
coxas, olhar distante.
O ar era do mais puro. A brisa suave
trazia o cheiro de natureza que tanto lhe agradava e as imagens à sua frente o
ajudavam a pensar. Olhou lenta e descompromissadamente as árvores em volta.
Lembrava de cada uma ao plantá-las e de
sua preocupação com o frio, as geadas e os ventos fortes do inverno. De que
pudessem não desenvolver-se adequadamente ou sucumbissem mesmo.
Mas a natureza era maior e mais sábia
que nosso conhecimento. Ali estavam todas, fortes e serenas, ofertando-lhe a
beleza que já antes tantas vezes admirara. E se movimentavam numa dança sensual
e livre, como a agradecer as mãos que as ajudaram a penetrar a terra fértil. Inevitável
pensar em Carla.
(1930) Era Presidente do Estado do Rio Grande do Sul o Dr. Getúlio
Vargas. Na turma que entrava na Faculdade de Direito naquele ano, estava um dos
jovens filhos de amigo do velho Ávila, Daniel Krieger, e junto com ele, José
Gay da Cunha, sobrinho do General Flores da Cunha, Telmo Jobim, Mário Diffini,
Luis Flores da Cunha, este filho do General, ,e entre muitos outros, Luisa
Barreto Leite, única mulher do grupo.
O Brasil servia de palco a profunda
luta política. Nesta, Júlio Prestes e Getúlio Vargas se defrontavam. Um
verdadeiro confronto aberto entre Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Nordeste,
contra São Paulo e seus aliados. Na verdade, estava em questão a continuação do
domínio econômico inglês, que ainda predominava, contra a sutil penetração
norte-americana, buscando novas zonas de influência. A crise mundial de l929
era sentida por toda a América do Sul.
A Aliança Liberal aglutinava líderes
que, até há pouco, vinham disputando o poder no estado. Entre os mais ferrenhos
defensores da luta armada, para que Getúlio fosse levado ao poder, estava João
Neves da Fontoura, do Partido Republicano, herdeiro político e dileto de Borges
de Medeiros, que quase se eternizara no governo do estado, e junto a ele,
Batista Luzardo, deputado e guerreiro do Partido Libertador, inimigo frontal do
mesmo Borges de Medeiros, excepcional orador, dono de todas as características
populistas, tão utilizadas naquela época conturbada. A Aliança Liberal era um
grupamento político de pouca ou nenhuma consistência, mas que reunira em seu bojo
praticamente todos os inimigos do então Presidente Washington Luiz, inimigos
também da continuidade da predominância de São Paulo no poder.
Por baixo do pano, sem preocupação com
defesa das liberdades ou do voto livre, sem visar somente a transferência do
poder para outro eixo que não São Paulo, um trabalho discreto, mas nítido
àqueles que tivessem mais tino era percebido: organizações industriais e
bancarias dos Estados Unidos davam apoio, inclusive financeiro, aos opositores
do Governo.
(1935) O Partido Comunista, em constante
esforço para firmar-se, ajuda a fundar a Aliança Nacional Libertadora. Em
contrapartida, o Governo Federal apresenta proposta, aprovada pelo Congresso,
que cria a Lei de Segurança Nacional, liberando plenos poderes ao executivo
para reprimir qualquer atividade que seja considerada subversiva. Forçada por
acontecimentos na cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro, nos quais fora morto
um operário, ocasionando greves e passeatas que param a cidade, a polícia fecha
a sede da Ação Integralista Brasileira, na verdade disfarce político de um
grande grupo de radicais de direita.
Legendário e reconhecido como um líder
sábio e honesto nas hostes da Escola Militar, por conta de sua fantástica
marcha através do Brasil há anos atrás, Luis Carlos Prestes, clandestino desde
que rompeu com Vargas, e que chefiara a coluna que protestara por todo o país,
vencendo as forças legalistas de então, era o inspirador, não só no Rio de
Janeiro, mas em vários outros estados do país, de movimento que planejava
derrubar Getúlio Vargas, considerando-o traidor do ideal da luta de l930,
agindo como ditador, sem respeitar a Constituição.
Reunindo civis e militares, o primeiro
levante ocorre em Natal, aonde o Governador é deposto e os rebeldes assumem o
poder Um dia depois, em Recife, os rebelados esboçam seus primeiros passos, mas
são imediatamente dominados pelas tropas do Governo. Sem apoio na região, em
três dias, o Governo do Rio Grande do Norte volta às mãos da legalidade, com a
derrota fragorosa e muitas prisões dos revolucionários.
No Rio de Janeiro, na noite de 26 para
27 de novembro, algumas unidades militares se sublevam, sendo rapidamente
sufocadas pelas forças do governo. O que resta é muita destruição, mortes, e a
certeza de que Vargas tivera sempre o controle da situação e das informações
sobre o que ocorria no seio dos conspiradores. O comunismo assustara. Agora,
com longos juros do tempo, pagaria caro.
(1939) A Alemanha invadira a Polônia,
demonstração de que o caminho que Hitler traçara era mais longo e audacioso
do que ao princípio se imaginasse. Começava oficialmente a Segunda Guerra
Mundial, que se estenderia pelo ano de l940, com a Alemanha conquistando cada
vez mais terreno e já ocupando quase toda a Europa.
No Brasil Getúlio criara o salário
mínimo e, no ano seguinte, a Justiça do Trabalho, sendo eleito para ocupar uma
cadeira da Academia Brasileira de Letras. Ironia maior àqueles que, por
momentos, para traduzir o que pensavam, estiveram sujeitos à censura por ele
implantada.
A guerra mundial continuava, mostrando
mais um traço da loucura desenfreada de seu líder maior, Hitler. A matança
sistemática e devastadora dos povos judeus. A União Soviética é atacada pela
Alemanha pouco depois de Hungria, Romênia e Bulgária terem aderido às potências
do nazi-fascismo.
Stalin, líder maior da Rússia, pego de
surpresa com a traição de Hitler, manda seus homens e tropas recuarem, não sem
antes destruírem tudo que houver pela frente. Assim os invasores alemães não
encontrarão nada que lhes sirva para qualquer fim ao tomarem conta dos
territórios. Ao final de l94l, os japoneses bombardeiam a base norte-americana
de Pearl Harbor, no Pacífico, ocasionando a entrada dos Estados Unidos na
guerra. Apesar de distante dos principais palcos de batalha, o Brasil sofre
pressões, principalmente dos Estados Unidos, e rompe relações com Alemanha e
Itália. As tropas alemãs ingressam na África, sendo enfrentadas pelos ingleses,
e o Japão fracassa na Austrália e no Havaí.
Na costa brasileira um submarino alemão
torpedeia o navio Cabedelo, causando a morte de vários tripulantes. Getúlio
Vargas enfrenta séria crise em seu governo, quando vários homens de sua
confiança pedem demissão, entre eles Filinto Muller. Embalado por manifestações
populares o Brasil clama por uma definição de seu governo quanto a tomar
partido na guerra que se dissemina por todos os continentes. Em 3l de agosto,
sem dispor mais de justificativas que lhe permitam evitar a decisão e sempre
levando em conta a posição de Inglaterra e Estados Unidos, Getúlio Vargas
declara o país em guerra contra Alemanha, Itália e Japão.
(Anos 70) Mário Ávila bebe seu chá no Iate Clube,
ao ar livre, olhando para a baía desenhada à sua frente. Tem como companheiro
de mesa o General Telles, ali conhecido, homem afável, culto, poderoso, até bem
pouco tempo atuante no governo dos militares. Conversam de forma amena. O
general sabe que Mário Ávila se trata de um gaúcho radicado no Rio de Janeiro,
advogado de profissão, fazendeiro rico que mudou para sua cidade.
Fez parte, até recentemente, de um
seleto grupo de militares que distribuiu o poder e a responsabilidade de
mantê-lo. Sabem, os que o rodeiam. que atuou como um dos cérebros do movimento,
permanecendo depois em funções de comando, impondo por onde passou uma linha de
ação dura e de decisões drásticas. Sua passagem para a reserva apanhou todos os
observadores de surpresa.
-Não há com que se surpreender Mário.
Meu tempo chegou. Creio que fiz o que me foi possível. Agora é com eles que
ficaram.
É um homem de mediana estatura, forte
no porte avantajado, expressão séria, olhar decidido, palavras firmes. Um tanto
calvo, cabelos sempre bem alinhados, pouco se lhe encontra o sorriso, como se
pecado fosse permiti-lo. Anda e senta, como agora, com postura de quem se impõe
aonde quer que esteja. Ao falar, o faz com os olhos nos olhos de seu
interlocutor. Mas deixa transparecer uma tristeza que até pouco tempo atrás não
fazia parte de seu estilo. Notando isso, Mário crê poder perguntar:
-Telles, nos conhecemos não faz tanto
tempo, mas o suficiente para sabê-lo firme nos seus princípios. Somos ambos
idosos e vividos. O que é que se passou com você? Não acredito que seu recato o
obrigue a silenciar da verdade para um companheiro como eu. O vejo triste, sem
o mesmo brilho que trazia nos olhos.
Estão ambos na faixa dos setenta e
poucos anos. Cada um a seu modo desgastado pela vida que viveu. Respeitam-se,
independentemente dos caminhos trilhados, não tão familiares a um e outro
naquilo que aparentam saber. Apesar dessa distância do viver e do convívio
recente, sentem-se a vontade ao falarem.
O destemor da experiência faz com que
os homens se aproximem, mesmo quando não compartilharam as mesmas estradas. Existe
alguma coisa que vem com a idade. Um quê de descompromisso e destemor. Um
sentimento que tem a ver com solidariedade talvez.
-Você tem razão Mário. Não poderia
dizer hoje que sou o mesmo de sempre. Meu filho mais velho, também militar, capitão
do exército, morreu no Araguaia. Disso você sabe. Todos souberam. Para um pai,
seja ele militar ou civil, é muito duro ver um filho morrer assim.
Mário o escuta e o observa.
-Eu que já comandei tantos homens, que
já olhei a morte de perto, que já desdenhei os sentimentos dos outros, agora
sei o que sente um pai, não importa de que lado esteja seu filho. Ajudei a
estruturar esse poder que aí está. Comecei muito cedo, menino ainda, na escola
militar. Como tantos outros fui adestrado para a luta. A política encarregou-se
de nos dividir em
facções. Alguns se encantaram com a esquerda. Outros, como
eu, continuaram direitistas. Sempre fui um típico militar. Aceitando as ordens,
não me importando em
questioná-las. E assim continuei a sê-lo, uma vez no comando.
Mas o poder é mais do que comandar. O poder possui tentáculos que não
percebemos enquanto se formam a nossa volta. Vivi estes anos todos ocupado em
reprimir nossa oposição. Fui um soldado em minha luta pelo que sempre julguei
meu dever. Por muitas vezes me mantive ausente dos meus, mulher e filhos, sem
dar-lhes a atenção que me cobravam ou escutar-lhes as opiniões. Não sei hoje se
acertei.
-O que é que você quer dizer? Que terá
falhado em parte do que se propôs?
-Não Mário. Para mim patriotismo era
lutar com a seriedade que encarei nossa luta. O comunismo era um fantasma que
nos assustava a todos. Mas em tudo em que me envolvi tive coerência com o que
pensava ser o melhor. Ocorre que fomos traídos. Temos sido traídos pelas
armadilhas do poder. Estas representam um inimigo maior e mais poderoso do que
aqueles que nos combatem. A cada dia temos perdido aliados, afastados da luta
pelos nossos ideais em busca do poder pelo poder e pelo dinheiro que corre
paralelo às negociações. É mais fácil tomar o governo do que governar um país
como o nosso. Fui descobrindo que nossas riquezas motivavam mais que a defesa
de nosso território.
-Não sei se o entendo bem Telles.
E permanece fitando o companheiro.
-Perdi um filho lutando contra
guerrilheiros. Está morto. O outro, que nunca lutou, considero-o perdido
também. Vive metido em negociatas, lucrando, muitas vezes com a tranqüilidade
de ter meu nome a protegê-lo. Disso me envergonho. Não foi a isso que me
propus. Nunca conheci alguém que abandonasse a guerrilha ou dela saísse para
atuar em
trampolinagens. Certamente existirão os corruptos da
esquerda. Não acredito que seja uma doença que atinja somente a nós. Sem
dúvida, aonde estejam no poder, sofrerão os mesmos males com que nos
defrontamos. Não é a luta que abranda nosso entusiasmo. O que nos alija é o
nojo que sentimos pela falta de caráter. Os militares brasileiros viveram por
muitos anos carregando a sina de radicais, mas tiveram sempre o respeito por
sua integridade moral. Hoje já não podemos decantar esse orgulho.
-Aonde você quer chegar? fala Mário.
-Igualamo-nos naquilo que combatemos em
tantos governos. Ao analisar um projeto você não tem segurança quanto a não
estar proporcionando a abertura de uma nova frente para os usurpadores. Bem sei
que não só militares ou ex-militares se beneficiam. Mas fui atingido muito de
perto. Em minha própria família a corrupção aportou. Não há questionamentos
morais quando os envolvidos percebem suas oportunidades. Estão saqueando nosso
país com a velocidade de vândalos. Com isso eu não podia conviver.
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