sábado, 22 de dezembro de 2012

"Caleidoscópio" em conta-gotas


CALEIDOSCÓPIO


Romance/Literatura Brasileira

Cunha/Victor Aronovich, 1945

Direitos Autorais Reservados, Rio de Janeiro / RJ 2002

Registro No. 138.960 Livro 222 Folha 495 Biblioteca Nacional

                                                                    -o-o-o-o-o-

Este livro é uma homenagem a uma geração de homens que fez a história de seu tempo, marcando sua trilha pela dignidade de propósitos, pela autenticidade de seus ideais, pela solidariedade universal que carregavam.

Formaram, certamente, uma raça que não teve nem terá substitutos, tal a grandeza de seu espírito, a dimensão de seus sonhos, e o inseparável destemor que lhes foi companheiro.

A nós caberá sempre lembrá-los, com o orgulho de podermos, quiçá, tentar segui-los, abraçando tambéos, abraçando tambde podermos, quiçro.pnhosela solidariedade                                               m causas maiores, na expectativa serena de esperar que a história nos reserve um julgamento justo.

De um deles, meu pai, tomei a liberdade de roubar cenas, me apropriando de fatia maior do que aquela que sempre tive o direito de carregar, qual seja seu nome.

A ele, José Gay da Cunha, lutador incansável; como portador da bandeira da liberdade, com muito amor, tenho a honra de ofertar minha principal homenagem.

Por tudo que nos disseste, por tudo que nos mostraste, por tudo que, mesmo calado, nos transmitiste em teu exemplo maior, por tudo que sempre foste, és e serás.

Obrigado Zé!
 
                                                                        -o-o-o-o-o-
Este livro é dedicado a minha mãe, Eugenia, valente e audaz, companheira na vida, na música, e nos sonhos que sempre traduziu, nas palavras e nos teclados; a meus irmãos, cuja solidariedade e carinho são marcas indeléveis que carregamos como herança de nossos pais; a meus filhos, amigos de ontem, hoje e amanhã, seus companheiros, companheiras e filhos, meus netos; aos amigos, poucos, que continuaram a caminhar comigo; e ao meu amor, Aninha, meu refúgio e verdade maior; e, por fim, àqueles que, mesmo os que não conheço, sei que lutam pelos direitos dos homens.
                                                        -o-o-o-o-o-
(1954)O cavalo trotava ágil entre duas fileiras de seibos, árvore que Ávila trouxera para enfeitar a paisagem por sugestão de Carla, e que o tempo mostrou estava ela cheia de razão ao elogiá-la. Davam flores lindas, vermelho forte, contendo uma nesga de amarelo. Não cresciam muito, abrindo-se mais para os lados com galhos predominantemente leves, que, com o verde muito vivo de suas folhagens, formavam um quadro de admirável beleza.
Puxou os arreios obrigando o cavalo a parar. Apeou. Queria sentar por alguns instantes em um pedaço muito especial do caminho. Ali, uns metros à direita, feito em troncos, com rústico acabamento, estava o banco aonde Carla descansava e o observava enquanto ele plantava as mudas de seibo. Alisou o pescoço do cavalo, em gesto típico de quem tem intimidade com o animal, batendo-lhe de leve, com carinho mesmo, quase à altura do peito.
Prendeu os arreios, agora pendentes, a um galho baixo da árvore mais próxima. Tirou o chapéu, afagando os próprios cabelos já parcialmente grisalhos e, com as mãos na cintura, punhos cerrados, olhou em volta e respirou fundo. Soltou o ar bem lentamente.
Com o chapéu bateu nos troncos do banco como a limpá-lo. Então, sentou-se. Pernas afastadas, corpo dobrado para a frente, com os cotovelos apoiados  nas coxas, olhar distante.
O ar era do mais puro. A brisa suave trazia o cheiro de natureza que tanto lhe agradava e as imagens à sua frente o ajudavam a pensar. Olhou lenta e descompromissadamente as árvores em volta.
Lembrava de cada uma ao plantá-las e de sua preocupação com o frio, as geadas e os ventos fortes do inverno. De que pudessem não desenvolver-se adequadamente ou sucumbissem mesmo.
Mas a natureza era maior e mais sábia que nosso conhecimento. Ali estavam todas, fortes e serenas, ofertando-lhe a beleza que já antes tantas vezes admirara. E se movimentavam numa dança sensual e livre, como a agradecer as mãos que as ajudaram a penetrar a terra fértil. Inevitável pensar em Carla.
(1930) Era Presidente do Estado do Rio Grande do Sul o Dr. Getúlio Vargas. Na turma que entrava na Faculdade de Direito naquele ano, estava um dos jovens filhos de amigo do velho Ávila, Daniel Krieger, e junto com ele, José Gay da Cunha, sobrinho do General Flores da Cunha, Telmo Jobim, Mário Diffini, Luis Flores da Cunha, este filho do General, ,e entre muitos outros, Luisa Barreto Leite, única mulher do grupo.
O Brasil servia de palco a profunda luta política. Nesta, Júlio Prestes e Getúlio Vargas se defrontavam. Um verdadeiro confronto aberto entre Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Nordeste, contra São Paulo e seus aliados. Na verdade, estava em questão a continuação do domínio econômico inglês, que ainda predominava, contra a sutil penetração norte-americana, buscando novas zonas de influência. A crise mundial de l929 era sentida por toda a América do Sul.
A Aliança Liberal aglutinava líderes que, até há pouco, vinham disputando o poder no estado. Entre os mais ferrenhos defensores da luta armada, para que Getúlio fosse levado ao poder, estava João Neves da Fontoura, do Partido Republicano, herdeiro político e dileto de Borges de Medeiros, que quase se eternizara no governo do estado, e junto a ele, Batista Luzardo, deputado e guerreiro do Partido Libertador, inimigo frontal do mesmo Borges de Medeiros, excepcional orador, dono de todas as características populistas, tão utilizadas naquela época conturbada. A Aliança Liberal era um grupamento político de pouca ou nenhuma consistência, mas que reunira em seu bojo praticamente todos os inimigos do então Presidente Washington Luiz, inimigos também da continuidade da predominância de São Paulo no poder.
Por baixo do pano, sem preocupação com defesa das liberdades ou do voto livre, sem visar somente a transferência do poder para outro eixo que não São Paulo, um trabalho discreto, mas nítido àqueles que tivessem mais tino era percebido: organizações industriais e bancarias dos Estados Unidos davam apoio, inclusive financeiro, aos opositores do Governo.
(1935) O Partido Comunista, em constante esforço para firmar-se, ajuda a fundar a Aliança Nacional Libertadora. Em contrapartida, o Governo Federal apresenta proposta, aprovada pelo Congresso, que cria a Lei de Segurança Nacional, liberando plenos poderes ao executivo para reprimir qualquer atividade que seja considerada subversiva. Forçada por acontecimentos na cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro, nos quais fora morto um operário, ocasionando greves e passeatas que param a cidade, a polícia fecha a sede da Ação Integralista Brasileira, na verdade disfarce político de um grande grupo de radicais de direita.
Legendário e reconhecido como um líder sábio e honesto nas hostes da Escola Militar, por conta de sua fantástica marcha através do Brasil há anos atrás, Luis Carlos Prestes, clandestino desde que rompeu com Vargas, e que chefiara a coluna que protestara por todo o país, vencendo as forças legalistas de então, era o inspirador, não só no Rio de Janeiro, mas em vários outros estados do país, de movimento que planejava derrubar Getúlio Vargas, considerando-o traidor do ideal da luta de l930, agindo como ditador, sem respeitar a Constituição.
Reunindo civis e militares, o primeiro levante ocorre em Natal, aonde o Governador é deposto e os rebeldes assumem o poder Um dia depois, em Recife, os rebelados esboçam seus primeiros passos, mas são imediatamente dominados pelas tropas do Governo. Sem apoio na região, em três dias, o Governo do Rio Grande do Norte volta às mãos da legalidade, com a derrota fragorosa e muitas prisões dos revolucionários.
No Rio de Janeiro, na noite de 26 para 27 de novembro, algumas unidades militares se sublevam, sendo rapidamente sufocadas pelas forças do governo. O que resta é muita destruição, mortes, e a certeza de que Vargas tivera sempre o controle da situação e das informações sobre o que ocorria no seio dos conspiradores. O comunismo assustara. Agora, com longos juros do tempo, pagaria caro.
 
(1939) A Alemanha invadira a Polônia, demonstração de que o caminho que Hitler traçara era mais longo e audacioso do que ao princípio se imaginasse. Começava oficialmente a Segunda Guerra Mundial, que se estenderia pelo ano de l940, com a Alemanha conquistando cada vez mais terreno e já ocupando quase toda a Europa.
No Brasil Getúlio criara o salário mínimo e, no ano seguinte, a Justiça do Trabalho, sendo eleito para ocupar uma cadeira da Academia Brasileira de Letras. Ironia maior àqueles que, por momentos, para traduzir o que pensavam, estiveram sujeitos à censura por ele implantada.
A guerra mundial continuava, mostrando mais um traço da loucura desenfreada de seu líder maior, Hitler. A matança sistemática e devastadora dos povos judeus. A União Soviética é atacada pela Alemanha pouco depois de Hungria, Romênia e Bulgária terem aderido às potências do nazi-fascismo.
Stalin, líder maior da Rússia, pego de surpresa com a traição de Hitler, manda seus homens e tropas recuarem, não sem antes destruírem tudo que houver pela frente. Assim os invasores alemães não encontrarão nada que lhes sirva para qualquer fim ao tomarem conta dos territórios. Ao final de l94l, os japoneses bombardeiam a base norte-americana de Pearl Harbor, no Pacífico, ocasionando a entrada dos Estados Unidos na guerra. Apesar de distante dos principais palcos de batalha, o Brasil sofre pressões, principalmente dos Estados Unidos, e rompe relações com Alemanha e Itália. As tropas alemãs ingressam na África, sendo enfrentadas pelos ingleses, e o Japão fracassa na Austrália e no Havaí.
Na costa brasileira um submarino alemão torpedeia o navio Cabedelo, causando a morte de vários tripulantes. Getúlio Vargas enfrenta séria crise em seu governo, quando vários homens de sua confiança pedem demissão, entre eles Filinto Muller. Embalado por manifestações populares o Brasil clama por uma definição de seu governo quanto a tomar partido na guerra que se dissemina por todos os continentes. Em 3l de agosto, sem dispor mais de justificativas que lhe permitam evitar a decisão e sempre levando em conta a posição de Inglaterra e Estados Unidos, Getúlio Vargas declara o país em guerra contra Alemanha, Itália e Japão.
 
(Anos 70) Mário Ávila bebe seu chá no Iate Clube, ao ar livre, olhando para a baía desenhada à sua frente. Tem como companheiro de mesa o General Telles, ali conhecido, homem afável, culto, poderoso, até bem pouco tempo atuante no governo dos militares. Conversam de forma amena. O general sabe que Mário Ávila se trata de um gaúcho radicado no Rio de Janeiro, advogado de profissão, fazendeiro rico que mudou para sua cidade.
Fez parte, até recentemente, de um seleto grupo de militares que distribuiu o poder e a responsabilidade de mantê-lo. Sabem, os que o rodeiam. que atuou como um dos cérebros do movimento, permanecendo depois em funções de comando, impondo por onde passou uma linha de ação dura e de decisões drásticas. Sua passagem para a reserva apanhou todos os observadores de surpresa.
-Não há com que se surpreender Mário. Meu tempo chegou. Creio que fiz o que me foi possível. Agora é com eles que ficaram.
É um homem de mediana estatura, forte no porte avantajado, expressão séria, olhar decidido, palavras firmes. Um tanto calvo, cabelos sempre bem alinhados, pouco se lhe encontra o sorriso, como se pecado fosse permiti-lo. Anda e senta, como agora, com postura de quem se impõe aonde quer que esteja. Ao falar, o faz com os olhos nos olhos de seu interlocutor. Mas deixa transparecer uma tristeza que até pouco tempo atrás não fazia parte de seu estilo. Notando isso, Mário crê poder perguntar:
-Telles, nos conhecemos não faz tanto tempo, mas o suficiente para sabê-lo firme nos seus princípios. Somos ambos idosos e vividos. O que é que se passou com você? Não acredito que seu recato o obrigue a silenciar da verdade para um companheiro como eu. O vejo triste, sem o mesmo brilho que trazia nos olhos.
Estão ambos na faixa dos setenta e poucos anos. Cada um a seu modo desgastado pela vida que viveu. Respeitam-se, independentemente dos caminhos trilhados, não tão familiares a um e outro naquilo que aparentam saber. Apesar dessa distância do viver e do convívio recente, sentem-se a vontade ao falarem.
O destemor da experiência faz com que os homens se aproximem, mesmo quando não compartilharam as mesmas estradas. Existe alguma coisa que vem com a idade. Um quê de descompromisso e destemor. Um sentimento que tem a ver com solidariedade talvez.
-Você tem razão Mário. Não poderia dizer hoje que sou o mesmo de sempre. Meu filho mais velho, também militar, capitão do exército, morreu no Araguaia. Disso você sabe. Todos souberam. Para um pai, seja ele militar ou civil, é muito duro ver um filho morrer assim.
Mário o escuta e o observa.
-Eu que já comandei tantos homens, que já olhei a morte de perto, que já desdenhei os sentimentos dos outros, agora sei o que sente um pai, não importa de que lado esteja seu filho. Ajudei a estruturar esse poder que aí está. Comecei muito cedo, menino ainda, na escola militar. Como tantos outros fui adestrado para a luta. A política encarregou-se de nos dividir em facções. Alguns se encantaram com a esquerda. Outros, como eu, continuaram direitistas. Sempre fui um típico militar. Aceitando as ordens, não me importando em questioná-las. E assim continuei a sê-lo, uma vez no comando. Mas o poder é mais do que comandar. O poder possui tentáculos que não percebemos enquanto se formam a nossa volta. Vivi estes anos todos ocupado em reprimir nossa oposição. Fui um soldado em minha luta pelo que sempre julguei meu dever. Por muitas vezes me mantive ausente dos meus, mulher e filhos, sem dar-lhes a atenção que me cobravam ou escutar-lhes as opiniões. Não sei hoje se acertei.
-O que é que você quer dizer? Que terá falhado em parte do que se propôs?
-Não Mário. Para mim patriotismo era lutar com a seriedade que encarei nossa luta. O comunismo era um fantasma que nos assustava a todos. Mas em tudo em que me envolvi tive coerência com o que pensava ser o melhor. Ocorre que fomos traídos. Temos sido traídos pelas armadilhas do poder. Estas representam um inimigo maior e mais poderoso do que aqueles que nos combatem. A cada dia temos perdido aliados, afastados da luta pelos nossos ideais em busca do poder pelo poder e pelo dinheiro que corre paralelo às negociações. É mais fácil tomar o governo do que governar um país como o nosso. Fui descobrindo que nossas riquezas motivavam mais que a defesa de nosso território.
-Não sei se o entendo bem Telles.
E permanece fitando o companheiro.
-Perdi um filho lutando contra guerrilheiros. Está morto. O outro, que nunca lutou, considero-o perdido também. Vive metido em negociatas, lucrando, muitas vezes com a tranqüilidade de ter meu nome a protegê-lo. Disso me envergonho. Não foi a isso que me propus. Nunca conheci alguém que abandonasse a guerrilha ou dela saísse para atuar em trampolinagens. Certamente existirão os corruptos da esquerda. Não acredito que seja uma doença que atinja somente a nós. Sem dúvida, aonde estejam no poder, sofrerão os mesmos males com que nos defrontamos. Não é a luta que abranda nosso entusiasmo. O que nos alija é o nojo que sentimos pela falta de caráter. Os militares brasileiros viveram por muitos anos carregando a sina de radicais, mas tiveram sempre o respeito por sua integridade moral. Hoje já não podemos decantar esse orgulho.
-Aonde você quer chegar? fala Mário.
-Igualamo-nos naquilo que combatemos em tantos governos. Ao analisar um projeto você não tem segurança quanto a não estar proporcionando a abertura de uma nova frente para os usurpadores. Bem sei que não só militares ou ex-militares se beneficiam. Mas fui atingido muito de perto. Em minha própria família a corrupção aportou. Não há questionamentos morais quando os envolvidos percebem suas oportunidades. Estão saqueando nosso país com a velocidade de vândalos. Com isso eu não podia conviver.


 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário