(Um
pouco de minha vida do
amor, do companheirismo, da admiração e do carinho que sempre tive e ainda
tenho por meu pai)
A
manhã irá começar. Nesgas de luz indicam que o sol surgirá forte, de verão. As
águas do Guaíba batem às margens em movimentos suaves.
Em
casa, o homem levanta e chama o filho mais velho. Este tem só oito anos.
Magricela, mas cheio de energia, sempre disposto.
Passa
pelos quartos dos outros. Ao todo são seis. Dormem ainda, cansados do brincar
de ontem, do correr pelo quintal da casa.
Bebe
um café rápido. Um pedaço de pão arrancado com a mão. O casaco de lã apesar do
verão, e a a boina que passou a fazer parte de sua figura.
O
menino já revisou o barco, preparou os remos, apanhou o balde e a “fieira”,
necessária para peixes maiores.
O barco
é leve, fabricado por eles, na garagem de casa. Enquanto faz isso, pensa em,
como estará o espinhel.
-
Como é “secretário”? Tudo pronto?
É o
pai que pergunta, cigarro na boca. E o menino se envaidece com o apelido que o
pai o trata. Faz com que se sinta importante.
Caminham,
puxando o carrinho do barco em direção à praia. E, entre uma tragada e outra, o
homem vai pensando em sua vida...
...
revoluções no Brasil...exílio ...o engajamento na guerra da Espanha...o gelo
dos Pirineus...fermentos em batalha...hospital... retorno às lutas ... volta às
Américas... Uruguai novamente...
Novos
amigos... novos lugares... uma jovem pianista apresentada por companheiros...o
amor... os filhos... muitos filhos...
Chegaram
à praia. O barco é posto na água. E começam a remar em direção ao espinhel.
Param
em uma das extremidades. A corda vai sendo içada e, lentamente, os peixes
aparecem, ainda lutando para libertar-se.
- Cuidado
pai! é o alerta do filho, mostrando um peixe que quase escapa.
Em
sua mente, o homem sente retornarem cenas vividas...
-
Cuidado Comandante! lembranças que voltam outra vez.
Os
homens se olham em meio ao pó que levanta. Mais uma bomba, desta vez um
morteiro, que caiu por perto. Não conseguiram se proteger suficientemente, e
foram atingidos. Alguns estão mortos, totalmente mutilados. Outros movem-se
lentamente.
O
Comandante desta vez foi um deles. Jogou-se ao chão, escutando o assovio do ataque,
mas a explosão veio muito rápida, atingindo sua perna direita.
Tenta
erguer-se. Cai de novo. Sente uma dor aguda que ainda não sabe explicar de onde
vem. Caido, passa a mão pela perna e percebe um grande ferimento por trás da
coxa direita.
-
Juan...Juan...
O
companheiro o acode, ajudando-o a levantar-se com dificuldade. É outro home
forte, espanhol, revolucionário.
Esta
é uma de suas últimas batalhas. Passará um tempo longe do front, sarando as
feridas, carregando a sequela do estilhaço de morteiro que se alojou junto ao
ciático. Por alguns anos, até a cirurgia, pouco conseguirá dobrar a perna.
A
cena se desvanece... e está de volta ao Guaíba, ao barco, aos peixes...
-
Vamos pai?
-
Sim filho, vamos!
Remam
até a margem. Foi um dia de boa pescaria. Tiram o barco da água e iniciam a
caminhada de volta.
Agora
os outros filhos já estão de pé. Tomaram café e brincam em mais um dia que
começa.
A
esposa está na cozinha.
Foi
mais uma pescaria que ficou para trás. Mais um pedaço de lembranças que surgiu.
A vida, intensamente vivida, cujo filme, volta e meia, insiste em retornar.
...revoluções
... tiros ... ferimentos ...companheiros.. traições ...alegrias ... crianças
com fome ou morrendo ... a neve, o frio ... o mundo que sofre por não se
entender...
Hoje
sua luta é outra. Seus inimigos são outros. Suas armas são outras. Hoje luta
para fazer dos filhos que crescem gente de verdade.
Gente
que pense e saiba o que quer. Gente que lute também por um mundo melhor. Gente que,
de alguma forma, tenha bagagem para, mais adiante, lutar por sua revolução.
A
revolução de cada um de nós. A revolução do homem em busca de sua liberdade, de
seus direitos, de sua dignidade, de uma vida com menos desigualdades.
Nenhum comentário:
Postar um comentário