(dedicadas a meus filhos que,
alguns, pouco tempo tiveram para conviver com meu Grande Herói e Exemplo de
vida)
1946 - Em
Rivera, Uruguai, cidade fronteiriça com Sant’Ana do Livramento, esta no Rio Grande
do Sul, no Restaurante Dona Maria, a
Anistia Internacional promove um jantar de confraternização, no qual serão
homenageados ex-exilados do mundo inteiro, representados por Carla Hiriarte,
famosa escritora chilena.
Gay da
Cunha, trabalha no restaurante como garçom, e está presente ao evento, sem que
saibam os proprietários quem é ele. Ao final do jantar, ao momento em que
chamam a homenageada para entregar-lhe uma corbelha de flores, honraria maior
da noite em que se brada pela democracia, esta reconhece José, perfilado frente
aos convidados, junto aos demais garçons.
-Quero
enviar esta coroa de flores a uma mulher que tem dividido sua vida com um dos
mais aguerridos heróis de nosso tempo. Quero entregá-la para que saiba o quanto
nós chilenos, espanhóis, brasileiros e tantos outros povos irmãos, que
aprendemos a admirá-lo pela coragem com que tem lutado pelo mundo, temos de
carinho por este brasileiro que nos dá a honra de estar hoje à nossa frente.
E, para
surpresa de todos os presentes, completa:
-Por favor,
companheiro José Gay da Cunha, um dos Comandantes das Brigadas Internacionais
que lutaram na Espanha contra o domínio Franquista, venha receber as flores. E
as leve para a Eugenia, em meu nome e de todos aqui presentes.
Chegando em
casa, já madrugada, quando acorda a esposa, José a vê olhá-lo com espanto, como
se pensasse que ele havia enlouquecido, para comprar a quantidade de flores que
trazia. Conta-lhe o ocorrido e, juntos, sem que os filhos pequenos que dormiam
tivessem percebido a cena, abraçam-se e choram.
Mas não choravam
tristezas. Eram lágrimas da gratidão, de, mesmo na dificuldade que se viam
obrigados a passar, amigos havia pelo mundo, e muitos que os queriam bem e lhes
reconheciam o valor pela luta que haviam abraçado.
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1975 - Na LTB, filial Bahia, fui
um dia visitar alguns amigos. Conversando com Selma, falou-me de outro amigo
seu, dono de uma agência de propaganda, Julgava ser possível conseguir
colocar-me. Atendiam clientes fortes, como o Banco Econômico e o Ministério de
Comunicações. Ficava na Ladeira da Barra, belo local, quase frente à entrada do
Iate Clube, uma vista deslumbrante do mar, principalmente em dias ensolarados.
E, em dois dias, lá estava eu a conversar com Rodrigo, seu diretor.
A experiência que trazia
comigo, o conhecimento técnico, e a vantagem de ser viajado, ajudaram a
chegarmos a um acordo. Era o começo de minha vida de “contato” em uma agência,
assim designado o cargo que ocuparia. E, entre outros clientes, menores, me
coube atender o Econômico, o que gerou dois grandes sustos, e uma das grandes
emoções que passei na vida.
Há um procedimento padrão
quando se iniciará um trabalho, representando uma agência de propaganda, junto
a um cliente: é enviado um Currículo do novo Contato, para conhecimento e
análise por parte da Diretoria que tem por atribuição definir a seleção, e
autorizar as mídias a veicular. Não fui exceção.
Contudo, dois dias após
enviarem meu Currículo, fui convocado a uma reunião com o Diretor Financeiro
Administrativo do Grupo Econômico, sem uma antecipação de motivos que o justificasse.
O diretor da agência demonstrava preocupação, estava visivelmente tenso, e um
tanto pálido quando me chamou à sua sala: - Victor, você tem algum problema com
cadastro bancário? Possui algum protesto? É réu em alguma ação na justiça?
Quando lhe afirmei desconhecer
qualquer tipo de problema, fosse um dos citados, fosse qualquer outro, só
então, me comunicou o pedido que recebera. E, no dia seguinte, à hora agendada,
lá estávamos nós dois, no suntuoso prédio Sede, na Cidade Baixa. Subimos ao
oitavo andar, nos anunciamos perante a Secretária, e, poucos minutos depois, fomos
chamados a entrar.
Apresentação feita, Zietelmann
virou-se para meu diretor e falou: - Por favor, quero conversar particularmente
com seu funcionário, Não se incomode, mas nos deixe a sós, Sobre sua mesa, de
forma bem destacada dos demais papéis que a ocupavam, estava meu Currículo,
cópia de minha Carteira de Identidade encima.
Sentou-se, ofertou-me, com um
gesto de mão, uma cadeira à sua frente, esperou que me sentasse, e sem maiores
delongas, perguntou: - O nome de seu pai é José Gay Cunha? – Sim, Dr
Zietelmann, respondi sem pestanejar. É meu pai. – Este seu pai é o José Gay
Cunha, que esteve preso na Frei Caneca, e depois, na Ilha Grande?
Era uma enxurrada de perguntas;
- É o que está citado por Graciliano Ramos em seu livro “Memórias do Cárcere”?
Que, por um tempo, exilou-se no Uruguai, e que esteve na Espanha a lutar contra
o General Franco? É o brasileiro que André Marty nomeou Comandante dos
Brigadistas Internacionais, quando estes se retiravam da Guerra Civil
Espanhola? Que foi ferido em combate por lá?
Minha mente trabalhava rápido.
Ele conhecia praticamente toda a biografia de meu pai. E, por instantes, me
passou pela mente o filme de minha infância. – Cuidado, diziam alguns colegas
de escola primária. Meu pai falou que ele é filho de um Comunista! – Olha lá.
Ele não assiste às aulas de religião. É porque o pai é Comunista! – No meu time
ele não joga! O pai é Comunista! E, assim por diante.
Havíamos, eu e meus irmãos,
sofrido momentos de perseguição e provocações. Muitas vezes, em reação natural
às agressões, que chegavam a ser físicas, fui para casa, literalmente, de cara
quebrada. Não havia como escutar tanto desaforo, não havia como manter-se
tranqüilo, mais ainda, quando se era, como no meu caso, bastante educado e
cordial. Mas, muito cedo, descobri meus limites.
Era difícil, muito difícil, me
fazer sair do sério. Mas, quando o conseguiam, apesar de muito magro, franzino,
pernas e braços muito finos, tinha um brio que crescera comigo. Agora, estava
eu ali, sentado frente a um diretor de um grande banco nacional, na expectativa
da seqüência de seu metralhar verbal. Meu maior temor era perder o emprego que
custara tanto a conseguir. E que tanta alegria me trouxera. Mas, não era um dia
ruim.
– Bem, Victor, vou chamá-lo
pelo nome porque você é muito jovem. Tem, certamente, idade para ser meu filho.
– Vinte e nove anos, Dr. Zietelmann. – Então é isso mesmo. Eu tenho quase
sessenta, e desde meus quinze anos que acompanho passo a passo a vida de seu
pai. Tenho, por ele, uma profunda admiração. Li tudo que encontrei pela frente
a seu respeito. Conheço Jorge Amado, um de seus ex-companheiros. Li Graciliano
e outros. Então, quero lhe dizer uma coisa, Victor: orgulhe-se de ser filho
deste homem! E permita-me, agora, dar-lhe um abraço apertado.
Levantou-se, contornou a grande
mesa em que trabalhava, e me abraçou, como um velho amigo o faz. Emocionado,
retribui seu abraço. E o acompanhei com os olhos a retomar seu lugar. Sentei novamente.
– Olhe “guri”, não é assim que
vocês gaúchos chamam os meninos? Agora você tem um compromisso maior comigo:
quando seu pai vier à Bahia, você fica obrigado a me apresentar a ele. Quero
ter o prazer de dizer-lhe o tanto que o admiro e respeito. Parabéns pelo
trabalho. Sendo filho de quem é, você só pode ser um cara correto e competente.
E para se lidar com verbas de propaganda, no caso de nosso Banco, um tanto
avantajadas, há que se ser valente. É muito dinheiro em jogo. Estaremos juntos,
a partir de agora. Vou mandar seu chefe entrar. E dar-lhe parabéns pela nova
contratação.
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Entre 1973 e
1975, é acionada uma das maiores operações de “caça às bruxas” pelos militares,
que, em todo território nacional, saem em busca de militantes e ex-militantes
que ainda usufruíam de certa liberdade de ação. Meu pai, por exemplo, que, por
ocasião do golpe, fora chamado para uma sessão de “questionamentos” sobre sua
possível participação em ações subversivas, é – literalmente – seqüestrado na
Caixa Econômica Federal, aonde trabalhava.
Uma das
grandes ironias deste momento é que o Ministro da Justiça, em exercício, a
serviço dos militares, é Daniel Krieger, gaúcho, que, em 1930, junto com meu
pai, e grande parte de familiares seus, os Flores da Cunha, levara Getulio
Vargas ao poder, em levante que se iniciara no Rio Grande do Sul. Além de
mantê-lo desaparecido por dez dias, ainda que o soubéssemos preso, sua casa é
invadida e, praticamente, destruída por vândalos de uniforme verde oliva.
Entre outros
notáveis, Paulo Brossard dispõe-se a falar, em nome da família, para que tenhamos
notícias sobre seu paradeiro. Depois de quase duas semanas, José Gay da Cunha é
devolvido à vida normal. Sobre seu convívio com aqueles que o aprisionaram e
lhe aplicaram torturas, nada comenta. Tinha um lema: “Prefiro não sujar a boca, falando de meus inimigos. Pronunciar seus
nomes seria uma forma de homenageá-los, o que não merecem.”
Contudo,
algumas atitudes, algumas medidas de resguardo, haviam que ser tomadas. Meu pai
pede transferência para Salvador, onde estou morando, e passamos, logo depois,
com a vinda de minha mãe e dos três irmãos mais novos, a dividir o mesmo teto. Este
afastamento temporário do Sul os irá tranqüilizar um pouco, tirá-los de foco.
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Zietelmann
morava em Arembepe, bairro afastado do centro de Salvador, alguns quilômetros
após o aeroporto, outrora uma praia que abrigara acampamentos de hippies, e
que, com o crescimento imobiliário, transformara-se em região de Condomínios de
algumas belas casas, muito junto do mar, espaçosos terrenos, frondosa vegetação
e tranqüilidade.
É até lá que
vou com meu pai, cumprir a promessa feita em nossa conversa no Econômico algum
tempo atrás. Estaciono, descemos do carro, Zietelmann à porta, ainda que de
bermudas, mas, vestido elengantemente, como lhe era de costume, abre os braços
e fala:
- Hoje
completo um ciclo de vida. Um ciclo que retrata a espera de quase cinqüenta
anos. Chegue aqui grande Comandante. Deixe que lhe dê o abraço guardado com
tanta admiração e conhecimento de suas lutas pelo Brasil e pelo mundo!
Cumprimentam-se
efusivamente. Um forte e demorado abraço, com típicos tapas fortes nas costas, como eram o respeito e a emoção que
demonstravam.
- Venham.
Vamos entrar e fazer um brinde, que já tenho tudo preparado, e – depois – falo
eu primeiro. Tenho inúmeras perguntas e minha aguçada curiosidade que só
cresceu desde minha juventude.
Ali, junto
aos dois, passei perto de quatro horas como mero ouvinte, assistente
privilegiado de entrevista e depoimento, com narrativas detalhadas e fatos e
personagens de nossa história, novos alguns deles, mesmo para mim, criado tão
junto e tão companheiro. Foi algo como que o desenlace festivo de uma busca e
premiação.
E quem mais
ganhava era eu, com certeza. Olhar aqueles dois homens, já com boa idade e
muita vivência, cada um a seu modo, com os olhos marejados e a voz, por vezes,
trêmula, embargada, não querendo sair, fruto das rasteiras que nos prega o
coração, é até os dias de hoje um dos melhores “retratos” que trago na história
de minha vida.
Durante
nossa tarde desfilaram Getúlio Vargas, Osvaldo Aranha, Flores da Cunha, Filinto
Muller, Jorge Amado, Luis Carlos Prestes e Olga Benário, Carlos Mariguela,
Apolonio Soares de Carvalho, André Marty, Comandante Mor e Herói da Guerra
Civil Espanhola, e tantos outros, alguns que, ainda jovens, ficaram no caminho,
em território estrangeiro.
Vi desfilarem
os Movimentos de 1930, 1932 e 1935, exílio, anistia, o fim do Estado Novo, a
implantação da Ditadura que ainda perdurava, Império dos Generais. Acorreram
lembranças da Europa, Paris, Madri, Toledo, Barcelona, os Pirineus, etapas dos
ajustes de poder pelo mundo, quando um certo Hemingway não passava de repórter
cobrindo guerras esparsas.
E quando
Picasso, ainda jovem, mas já vivendo na França, pinta Guernica, em registro de
um “exercício” da aviação ítalo-alemã. A Segunda Guerra Mundial serpenteava
seus primeiros passos. Um grande e detalhado desfile de história, atualidades e
perspectivas, sombrias perspectivas, quanto ao rumo que nosso Brasil parecia
ainda ter pela frente.
Despedimo-nos,
e quando saímos para a Pituba já se insinuava mais uma suave noite baiana. Calados,
percorremos o nosso caminho de volta, no silêncio da solidariedade, da cumplicidade
e da admiração crescente que eu nutria por este grande homem que foi meu pai,
um quixotesco idealista, pertencente a uma raça de corajosos justiceiros que se
desfez no tempo.
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A estada de
meus pais e irmãos em Salvador foi de tempos serenos, ainda que todos lutassem
com a adaptação a novas culturas, um clima radicalmente distinto do que haviam
convivido no sul, ora sol escaldante, ora chuva intermitente, mas um conjunto
de fatores, por vezes, inóspitos. Principalmente meus irmãos, em escolas com
currículos bastante voltados à região, sentiram mais dificuldade para
adaptar-se.
Sua volta ao
sul, agora para morar em São Paulo, foi uma notícia bem recebida por todos.
Para mim, para Victor, meu filho, restou uma fatia de saudade e a falta de suas
presenças, principalmente à noite, quando jantávamos juntos e nos reuníamos
para conversar, principalmente para escutar meu pai a contar suas andanças e
lutas pelo mundo afora, ou escutar minha mãe ao piano, quando nos atrevíamos a
cantar, cada um, um pouco. Yuri, então com treze anos, ensaiava os primeiros
passos de uma brilhante carreira de cantor.
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