Mário Ávila se reúne com os filhos na
casa de Belém Novo, agora sede de suas propriedades restritas a estas e a
Tapes. Quer conversar com eles antes de viajar. Crê importante trocarem algumas
idéias sobre como as coisas andarão daqui em diante Marília já está no Rio.
Adiantou-se ao pai, aproveitando para tirar umas férias mais longas e conhecer
a cidade em companhia de Márcio e Lauro.
-Bem, está chegando a hora. Vamos lá.
Traz o chimarrão Ricardo. Vai ajudar nosso raciocínio.
Paulo já está à frente do pai. Olha-o
sentindo um quê de saudades. Ama-o,
amigo que sempre lhe foi. E o entende, por vezes levando algum tempo para
consegui-lo. Sabe merecer-lhe muita confiança. Ricardo chega com o mate, puxa a cadeira e
também senta, fechando o círculo em volta da mesinha aonde apoia a chaleira.
-Pronto pai. Pode falar. Quem bebe o
primeiro?
E passa a cuia já servida para o pai.
-Não sei como chamo vocês, se de
meninos, rapazes ou senhores. Na verdade não me preocupo muito. Sei que posso
viajar tranquilo, deixar tudo sob a responsabilidade dos dois. Ainda que os
mais velhos sejam Márcio e Lauro, foi com vocês que sempre contei mais em nosso
trabalho. Eles não desenvolveram a mesma afinidade com esta lida do campo e dos
animais. Vocês são mais dispostos, em alguma proporção, mais humildes e mais
que isso, com mais vontade de aprender e de tentar fazer o que aqui se faz.
Estou feliz por sentir o que sinto hoje. Agora chegou a hora em que preciso
dizer-lhes isso.
Sorve um gole do chimarrão, olha os
filhos com serenidade:
-Aqui cresci, conheci meus amigos e
participei de muitas lutas, mas aprendi a amar esta terra tão fértil que hoje
guarda muito da vida de algumas gerações de nossa família. Chegou, entretanto,
um tempo em que sinto precisar mudar de ares. Já tive momentos em que pensei no
risco de nenhum dos meus filhos se adaptar a esta vida. Com vocês nem sempre
concordei em tudo, ao menos no início. Mas verdade que, na maioria das vezes,
nos entendemos e continuamos nosso caminho de forma harmoniosa. Tenho aprendido
muito com vocês e com seus irmãos, com sua juventude, malandragem, astúcia
sadia. Tenho tentado lhes passar um pouco do que sei, fruto de minha vivência,
viagens, conhecimento e participação nos fatos e nos negócios. Do que absorvi
com amigos e companheiros.
Apanha um cigarro, acende-o e continua:
-Alguns muito contribuíram com sua
lealdade, outros me decepcionaram pela fraqueza e falta de dignidade. Bem sei
que, por momentos, terão duvidado de minhas sugestões ou conselhos. Também eu,
ainda jovem, me julguei sabendo mais que os mais velhos. Daqui a algum tempo,
algumas mancadas adiante, algumas dores afogadas no peito, algumas alegrias e
satisfações vividas, com certeza chegarão a conclusões parecidas com as que
cheguei. Vive-se aprendendo. Há, entretanto, uma coisa que vale mais que
qualquer outra e que nos ajudou a sermos o que somos hoje : nossa união. Esta
é, sem dúvida, a grande verdade e o grande segredo de quem quer ser forte.
Os filhos o escutam, atentos.
-Não permitam que os fatos, as
dificuldades ou as discordâncias que possam advir-lhes, causem seu afastamento
ou estremeçam seu bem querer. Tu, Paulo, tens um estilo, Ricardo outro. Com
cada um já falei a respeito. Vocês se somam, não competem. Querem coisas que
não se chocam. Ambos gostam de trabalhar e o fazem bem feito, em áreas
distintas. Da harmonia que conseguirem virá o melhor resultado. São, ambos,
homens de bons propósitos, de bons sentimentos, um mais sereno, mas com limites
bem definidos, o outro um pouco mais afoito, mais imediatista na sua
indignação, mas ambos com claras e positivas intenções , sabendo aonde querem
chegar e com boa noção de tempo quanto a esperar por seus efeitos. Um é mais
voltado para o conjunto dos resultados, o outro mais detalhista, minucioso,
preocupado com a primeira impressão, com a aparência. Um mais ligado para o
planejamento a longo prazo, o outro interessado em ver as coisas acabadas a
cada etapa que se encerra.
Respira, bate a cinza que cresce no
cigarro à sua mão:
-Se souberem somar as virtudes e se
alertarem quanto aos possíveis defeitos que certamente possuem, formarão uma
dupla invariavelmente vencedora. Se permitirem que entre os dois seja jogado o
veneno da discórdia, do ciúme, da inveja, estarão irremediavelmente perdidos.
Terão que tomar, por ora, um cuidado. Como ainda são muito jovens, serão sempre
questionados quanto à competência e seriedade. Isso não os deve deixar
contrariados. É um vício dos mais velhos. Pensem bem. Se olharem para um menino
de quinze anos vão achá-lo um garoto, assim como, há cinco ou seis anos, quando
tinham a idade dele, pensavam que quem já tivesse vinte era muito velho. Assim
será por muito tempo, até que atinjam uma idade que não sei dizer-lhes
exatamente qual é, mas é quando os homens passam a se respeitarem por igual,
como se admitindo que são todos adultos e responsáveis. Até lá, alguns anos
irão se passar e vocês saberão perceber quando este momento chegou.
Mário fala pausado, pensando bem antes
de continuar:
-Sentimos isso no trato que nos dão os
outros, na maneira que nos olham e nos ouvem, no modo que nos cumprimentam ao
passarmos. Queiram sempre chegar aonde se determinaram, mas guardem de forma
carinhosa a noção de tempo para consegui-lo. Ambos sabem dirigir um automóvel.
Verão que podemos aprender muito enquanto guiamos um carro. Dirigir é um
exercício de vida, de contínua descoberta.
Paulo e Ricardo escutam atentos. Haviam
aprendido a gostar de ouvir seu pai a falar. Tinha entusiasmo e coerência no que dizia. Não
era homem de dizer sem pensar. Se em algum momento ofendesse, podia-se ter a
certeza de que o fizera com a intenção deliberada de ferir. Não permitia que lhe
escapassem as palavras sem burilá-las para atingir a clareza desejada. Falava
muito quando necessário, talvez porque fosse um tranquilo e atento ouvinte
quando a ele se dirigiam. E possuía uma noção muito apurada de oportunidade. Sabiam-no,
em certas ocasiões, esperar dias, meses se necessário, para não desperdiçar
suas opiniões por inadequadas ou abruptas.
Os ensinara com exemplos a todo
instante, a serem observadores, mesmo enfrentando a dificuldade de estar em uma
situação e ter que analisá-la como se dela não participassem.
-Vejam o que lhes vem à mente ao
quererem ultrapassar outro carro em uma estrada. Não é a força que precisam no
carro de vocês para isso? E se um caminhão lhes dá uma fechada, não tem vontade
de enfrentá-lo e empurrá-lo para fora da estrada? O outro carro, se tiver motor
para isso, será ultrapassado, mas o caminhão não. Tentar fazê-lo seria uma
loucura. Ele é maior. Não há como enfrentá-lo. Assim, o melhor é esquecê-lo ou
esperar pelo dia em que, quem sabe, tenhamos nas mãos outro caminhão.
Sorriu para os filhos. Lhes percebia
entendê-lo:
-E o carro que podemos ultrapassar? Não
é só querer e poder. É preciso aguardar o momento adequado, aonde a estrada nos
permita ver adiante, aonde tenhamos espaço com folga para passar por ele, mesmo
que ele tente evitar isso aumentando sua velocidade. Ou seja, temos que estar
dispostos a fazer um esforço maior naquele momento. Caso contrário, corremos o
risco de não obter sucesso em nosso plano. A vida tem disso. Parece muito
simples. Não é tão fácil assim. Vemos gente que sai da estrada, outros que
capotam, alguns que batem em outro carro. O que é isso, senão a soma da pressa
com a falta de planejamento, com o pouco interesse em observar as
circunstâncias? E algumas vezes é pura falta de preparo.
Tinha consciência de conseguir
transmitir-lhes o que desejava. Sem pressa.
-Só podemos querer fazer algo quando
nos sentimos prontos, ensinados, com conhecimento suficiente para analisar as
possíveis dificuldades que iremos enfrentar. Se falharmos, erramos em nossa
auto-avaliação. Valerá a pena insistirmos, caso cheguemos à conclusão de que
temos condições de melhorar. Aí, o tempo necessário passa a ser um detalhe
perante a importância que tem para nós o objetivo. Assim talvez seja no amor,
quando nem sempre encontramos a pessoa que desejamos, a retribuir o que por ela
sentimos. Ou sem nos perceber da forma que gostaríamos, sem entender nosso
sentimento, sem corresponder à nossa expectativa. Se tivermos a firme impressão
de que é a pessoa certa, valerá a pena lutar, enfrentar rivais, sentir-se
maior, mostrar-se mais forte, ainda que estejamos arrasados. Mas, até nesta
ocasião, haverá um limite que iremos descobrir.
Intercalava as palavras com um gole ou
outro do chimarrão:
-Só perceberemos isto, quando nos
olharmos de fora. Saindo da história, como meros observadores de nós mesmos.
Certamente, com tudo que pensemos e possamos nos esforçar, cometeremos falhas e
muitas. Sofreremos decepções, por vezes leves, por outras, verdadeiros desastres.
O tempo irá dar-lhes a verdadeira dimensão. Mas, podemos nos ajudar. Com
vontade de olhar para a frente, procurando ver adiante, nos preparando para
evitar que nos atinjam em pontos que já fomos feridos. Sempre estivemos juntos.
Chegou um momento que necessito me refazer. Mas continuaremos a nos ver e a nos
falarmos.
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