Iran Nepomuceno Dias era um viúvo
pacato. Estava a cuidar de seus passarinhos quando escutou palmas à frente da
casa. Um jovem desconhecido lhe trazia algumas roupas da filha, um par de
sapatos, uma correntinha que lhe pertencera, tudo envolto em pequeno pacote.
-O senhor é o pai de Elenita?
perguntara. Isto ficou conosco. Lamento lhe dizer que ela foi morta ontem à
noite.
Não teve qualquer reação. O rapaz,
rosto magro e pálido, olhando muito em volta, se despedira rápido, voltando ao
carro que o esperava. Iran entrou em casa, largou os objetos e saiu de novo
para o quintal.
Abriu uma a uma suas gaiolas, soltando
os passarinhos que cuidara por tantos anos. Com um pano nas mãos, fez
movimentos bruscos para obrigá-los a voar e se afastarem. Alguns insistiam em
permanecer à sua volta. Entrou em casa e ficou a olhar, na sala, sobre o
balcão, o porta-retrato com as fotos da mulher e da filha, esta ainda menina,
rabo-de-cavalo, sorrindo seu sorriso largo. Os olhos muito grandes e
expressivos. Lembrou de sua vida, funcionário da Rede Ferroviária, uma filha
só, que a mulher tivera um problema que a impediu de engravidar outra vez.
Os passeios pela pracinha do bairro nos
domingos, com Elenita muito pequena aprendendo a caminhar. O balanço, o
escorregador, a gangorra. O esforço para que ela estudasse num colégio melhor
quando concluiu o ginásio. A compra do
carrinho DKW usado, no qual saiam para almoçar. As churrascarias sempre cheias
nos domingos. A alegria da filha e sua emoção no dia que entrou em casa para
dizer-lhe que fora aprovada no vestibular.
O namorado, Carlos, rapaz fino e
recatado. Pouco falante quando junto deles, como a esperar que Elenita dissesse
as coisas por ele. O dia, semanas atrás, em que a filha o visitara para contar
que estava muito bem, junto de amigos queridos, lidando com crianças e
ajudando-as a entenderem a vida. A despedida, ela sorrindo muito:
-Até logo, pai. Tu estás muito bem.
Bonitão, forte, tranqüilo. Não te preocupes comigo. Daqui a alguns dias venho
com mais tempo.
Palavras de uma filha que o amava. Mas
que, sabia, não traduziam a verdade. Calçou sapatos, de chinelo que estava,
trocou de camisa e vestiu um pulôver de lã. Passou no banco, sacou o dinheiro
que julgou suficiente e foi comprar dois revólveres 38. Para munição só uma
caixa. Já de volta, sentou-se na sala e calmamente carregou os tambores. Foi
até seu armário e os guardou na gaveta. Por algumas horas esperou o sono
chegar, estirado na cama, sem se preocupar em tomar banho ou trocar a roupa. No
dia seguinte passou em uma loja que vendia capas de chuva de lã, uma peça
inteira, quase um poncho, contendo só duas aberturas para por elas passar os
braços.
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A praça em frente à Prefeitura era um
dos palcos mais freqüentes para aglutinar aqueles que desejavam promover uma
manifestação. Eram mais ou menos quatro da tarde e estudantes e operários
começavam a chegar vindos da Siqueira Campos, da Sete de Setembro, da Borges de
Medeiros, da Uruguai, da Voluntários da Pátria. Os grupos se formavam dispersos
a princípio, mais compactos após algum tempo.
Começava-se a escutar vozes que
lançavam slogans contra o governo. Algumas lojas iam fechando as portas.
Mulheres que faziam compras apressavam o passo, afastando-se da multidão e
tentando chegar aos fins-de-linha dos ônibus. Pela Avenida Mauá se percebia o
início de movimentação de tanques, acompanhados por soldados da cavalaria. Foram
se alinhando na boca da Borges de Medeiros, de frente para a avenida.
Os soldados, montados em seus
avantajados cavalos, distribuíam-se nas esquinas em volta da área, formando um
alçapão do qual seria difícil escapar. No meio da praça, um pequeno monumento
marcava o marco zero da cidade de Porto Alegre. Bem próximo, como se não
notasse a movimentação das pessoas em sua volta, estava Iran. Chapéu preto de
vaqueiro, a grande capa de lã lhe encobrindo totalmente o corpo, como um cone
azul marinho. A praça estava apinhada de gente.
Das janelas da Prefeitura e de alguns
prédios próximos, curiosos se debruçavam esperando pelo desfecho inevitável. Agora,
ocupando as escadarias, palanque natural da sede do município, se ouviam os
discursos de líderes estudantis revezando-se com sindicalistas. Lentamente os
tanques começaram a avançar, em movimento quase circular, pressionando o povo a
comprimir-se e sair de parte da Borges que ocupava interrompendo o trânsito. Das
esquinas em que se haviam postado, os pelotões de cavalaria também fechavam o
cerco.
O espaço ficava cada vez menor e os
primeiros empurrões eram notórios, entre gritos e protestos dos que estavam no
chão, às vezes pisados pelas patas dos cavalos. Um jovem apanhou uma pedra e a
atirou contra um dos tanques.
-Abaixo a ditadura, gritou, acendendo o
estopim.
As tropas avançaram sobre o povo.
Atropelavam, batiam, atiravam. As pedras da praça serviam de armamento para o
revide. Ouviam-se gritos e ruído de vidros quebrados. Em todas as direções se
via gente correndo, caindo, levantando e correndo de novo. Era uma batalha
campal o que ocorria então. Impassível, como se mantivera desde o início, Iran
ainda estava sentado sobre a murada que envolvia o chafariz central.
Levantou-se, parecendo desconhecer o
que se passava em sua volta, caminhando em direção a um dos pelotões. Tirou os
dois braços para fora da capa, cada um portando um 38. E saiu atirando até
descarregá-los. Antes de cair, também baleado, teve a certeza de ter atingido
três ou quatro soldados. Mesmo ferido buscou as balas que trazia no bolso.
Colocou três delas no tambor de um dos revólveres. O outro lhe escapara da mão
ao cair. O barulho era enorme. Os homens misturados aos cavalos faziam um
desenho confuso e grotesco. Queria acertar mais um pelo menos.
Mas foi atropelado antes que pudesse
atirar novamente. Não trouxera documentos. Assim o fizera para que não o associassem à
morte da filha.
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