quinta-feira, 4 de julho de 2013

Caleidoscópio (cenas em Porto Alegre nos "Anos de Chumbo")


Iran Nepomuceno Dias era um viúvo pacato. Estava a cuidar de seus passarinhos quando escutou palmas à frente da casa. Um jovem desconhecido lhe trazia algumas roupas da filha, um par de sapatos, uma correntinha que lhe pertencera, tudo envolto em pequeno pacote.

-O senhor é o pai de Elenita? perguntara. Isto ficou conosco. Lamento lhe dizer que ela foi morta ontem à noite.

Não teve qualquer reação. O rapaz, rosto magro e pálido, olhando muito em volta, se despedira rápido, voltando ao carro que o esperava. Iran entrou em casa, largou os objetos e saiu de novo para o quintal.

Abriu uma a uma suas gaiolas, soltando os passarinhos que cuidara por tantos anos. Com um pano nas mãos, fez movimentos bruscos para obrigá-los a voar e se afastarem. Alguns insistiam em permanecer à sua volta. Entrou em casa e ficou a olhar, na sala, sobre o balcão, o porta-retrato com as fotos da mulher e da filha, esta ainda menina, rabo-de-cavalo, sorrindo seu sorriso largo. Os olhos muito grandes e expressivos. Lembrou de sua vida, funcionário da Rede Ferroviária, uma filha só, que a mulher tivera um problema que a impediu de engravidar outra vez.

Os passeios pela pracinha do bairro nos domingos, com Elenita muito pequena aprendendo a caminhar. O balanço, o escorregador, a gangorra. O esforço para que ela estudasse num colégio melhor quando concluiu o ginásio.  A compra do carrinho DKW usado, no qual saiam para almoçar. As churrascarias sempre cheias nos domingos. A alegria da filha e sua emoção no dia que entrou em casa para dizer-lhe que fora aprovada no vestibular.

O namorado, Carlos, rapaz fino e recatado. Pouco falante quando junto deles, como a esperar que Elenita dissesse as coisas por ele. O dia, semanas atrás, em que a filha o visitara para contar que estava muito bem, junto de amigos queridos, lidando com crianças e ajudando-as a entenderem a vida. A despedida, ela sorrindo muito:

-Até logo, pai. Tu estás muito bem. Bonitão, forte, tranqüilo. Não te preocupes comigo. Daqui a alguns dias venho com mais tempo.

Palavras de uma filha que o amava. Mas que, sabia, não traduziam a verdade. Calçou sapatos, de chinelo que estava, trocou de camisa e vestiu um pulôver de lã. Passou no banco, sacou o dinheiro que julgou suficiente e foi comprar dois revólveres 38. Para munição só uma caixa. Já de volta, sentou-se na sala e calmamente carregou os tambores. Foi até seu armário e os guardou na gaveta. Por algumas horas esperou o sono chegar, estirado na cama, sem se preocupar em tomar banho ou trocar a roupa. No dia seguinte passou em uma loja que vendia capas de chuva de lã, uma peça inteira, quase um poncho, contendo só duas aberturas para por elas passar os braços.

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A praça em frente à Prefeitura era um dos palcos mais freqüentes para aglutinar aqueles que desejavam promover uma manifestação. Eram mais ou menos quatro da tarde e estudantes e operários começavam a chegar vindos da Siqueira Campos, da Sete de Setembro, da Borges de Medeiros, da Uruguai, da Voluntários da Pátria. Os grupos se formavam dispersos a princípio, mais compactos após algum tempo.

Começava-se a escutar vozes que lançavam slogans contra o governo. Algumas lojas iam fechando as portas. Mulheres que faziam compras apressavam o passo, afastando-se da multidão e tentando chegar aos fins-de-linha dos ônibus. Pela Avenida Mauá se percebia o início de movimentação de tanques, acompanhados por soldados da cavalaria. Foram se alinhando na boca da Borges de Medeiros, de frente para a avenida.

Os soldados, montados em seus avantajados cavalos, distribuíam-se nas esquinas em volta da área, formando um alçapão do qual seria difícil escapar. No meio da praça, um pequeno monumento marcava o marco zero da cidade de Porto Alegre. Bem próximo, como se não notasse a movimentação das pessoas em sua volta, estava Iran. Chapéu preto de vaqueiro, a grande capa de lã lhe encobrindo totalmente o corpo, como um cone azul marinho. A praça estava apinhada de gente.

Das janelas da Prefeitura e de alguns prédios próximos, curiosos se debruçavam esperando pelo desfecho inevitável. Agora, ocupando as escadarias, palanque natural da sede do município, se ouviam os discursos de líderes estudantis revezando-se com sindicalistas. Lentamente os tanques começaram a avançar, em movimento quase circular, pressionando o povo a comprimir-se e sair de parte da Borges que ocupava interrompendo o trânsito. Das esquinas em que se haviam postado, os pelotões de cavalaria também fechavam o cerco.

O espaço ficava cada vez menor e os primeiros empurrões eram notórios, entre gritos e protestos dos que estavam no chão, às vezes pisados pelas patas dos cavalos. Um jovem apanhou uma pedra e a atirou contra um dos tanques.

-Abaixo a ditadura, gritou, acendendo o estopim.

As tropas avançaram sobre o povo. Atropelavam, batiam, atiravam. As pedras da praça serviam de armamento para o revide. Ouviam-se gritos e ruído de vidros quebrados. Em todas as direções se via gente correndo, caindo, levantando e correndo de novo. Era uma batalha campal o que ocorria então. Impassível, como se mantivera desde o início, Iran ainda estava sentado sobre a murada que envolvia o chafariz central.

Levantou-se, parecendo desconhecer o que se passava em sua volta, caminhando em direção a um dos pelotões. Tirou os dois braços para fora da capa, cada um portando um 38. E saiu atirando até descarregá-los. Antes de cair, também baleado, teve a certeza de ter atingido três ou quatro soldados. Mesmo ferido buscou as balas que trazia no bolso. Colocou três delas no tambor de um dos revólveres. O outro lhe escapara da mão ao cair. O barulho era enorme. Os homens misturados aos cavalos faziam um desenho confuso e grotesco. Queria acertar mais um pelo menos.

Mas foi atropelado antes que pudesse atirar novamente. Não trouxera documentos.  Assim o fizera para que não o associassem à morte da filha.

 

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