quinta-feira, 4 de julho de 2013

Caleidoscópio (uma história de vida, contada no campo)


-Sabes Marília? Ainda que tenhas, no passado, vivido aqui boa parte de tua vida, creio que não conheces uma historinha interessante. É coisa contada no campo, por gente que lida com a terra, com o plantio, os animais. Conta que um dia, em terras que possuía, um homem resolveu plantar. Não conhecia muito a lida, mas sabia ser mais ou menos simples conseguí-lo. E começou a trabalhar. Plantou eucaliptos, pinheiros, cinamômos e mangueiras.

Olhava-a e seguia, com seu falar pausado:

-Depois um coqueiro, pessegueiros, pereiras, limoeiros, laranjeiras e uma parreira.  Durante alguns anos, à medida em que ia envelhecendo, tratou de retirar as ervas daninhas que nasciam em seu terreno, capinando e arrancando o capim que por ventura crescesse. Quando podia, adubava a terra sem ter a certeza de fazê-lo da forma mais adequada, afinal pouco entendia do plantio. Mas a quem recorrer para orientar-se? Todos plantavam árvores através dos tempos, sem terem estudado o assunto. E as plantas, de uma forma ou de outra, cresciam. Verdade que, em alguns dos sítios, formaram-se verdadeiras florestas, quase indevassáveis. Outros conseguiram belos pomares, e alguns se contentavam com rasteiras hortaliças. Na grande planície, por eles habitada, predominavam aqueles que olhavam o mato natural crescer à sua volta. Estes últimos, quando caminhavam pelas cercanias, lançavam seu olhar de desdém àquilo que os mais empenhados haviam obtido a custa de muita dedicação. Não raro, se lhes estivesse ao alcance, quebravam algum galho, ou atiravam pedras em frutos nascentes, quando não se contentavam em simplesmente arrancar ou esmagar as flores que surgiam.

Todos escutavam. A história era, de fato, algo como uma lenda local.

-O tempo passava, e nosso homem envelhecia junto a suas árvores e seu terreno. Cansado, já não tinha a mesma disposição para limpar a área. O adubo se tornara pesado para carregar até o ponto certo e, quando ainda obtido, o era feito de forma desordenada, e em pequenas quantidades ocasionais. Agora eram as plantas e o terreno a se entenderem da melhor forma que a natureza lhes permitisse. De certa maneira, o homem podia pouco mais que olhá-las, lembrar-se de quando as plantara e vira crescer, procurando descansar à sombra maior ou menor que cada uma projetasse. Os dois eucaliptos haviam crescido desiguais...

- Um era muito esguio, troncos um tanto frágeis, adquiriu enorme altura. O outro custara a desenvolver-se exigindo ser podado, pois aparentava lentidão para tornar-se adulto. Passado algum tempo tornou-se firme, fortes galhos, folhagens espessas, boa sombra. E, quando vinha o vento, resistia bem melhor ao açoite. Perdia menos folhas e flores. Nele, mais facilmente, as crianças brincavam, pela firmeza e segurança que lhes transmitia.

Marília mostrava um ar de quem não assimilava aonde se quer chegar. Mas Paulo, mesmo percebendo isto, seguia em frente.

-Um dia, sob forte tempestade, o mais alto falou: ”Toma cuidado. Meus troncos e folhas vão cair de mim e poderão te cobrir, tão baixo és.” Tranqüilo, respondeu: ”Não te preocupes. Certamente agüentarei e, no chão, teus pedaços irão deteriorar-se, me servindo de adubo. Te ficarei grato.” No meio da tempestade um raio atingiu o mais alto, deixando-o desfigurado e mais frágil ainda do que era sem o saber. O pinheiro, que crescera imponente, muito mais rápido que as demais árvores, por um bom tempo as olhava de cima, cheio de contrastes, em seus mais variados verdes dos brotos, ou no marrom das pinhas que já formava. Nunca entendeu por que, com o passar do tempo, fora mudando o prumo, entortando mesmo. A qualquer ventinho, fraco que era, perdia galhos.

Além disso, quando o verde esmaecia, em seu lugar surgia um detestável escuro, puxando a marrom, meio palha, que ele deplorava. Foi ficando cada vez mais calado, e só o vento lhe arrancava alguns suspiros. O cinamomo fora meio problemático. Não muito alto, desajeitado, crescera de forma irregular, troncos tortos e cheios de nós, seus frutos feios, quando velhos cheirando a gordura. Mas tinha raízes enormes que se espalhavam mais imponentes, ele chegando a atrapalhar as outras árvores por perto. Era meio contraditório. Pesadão, mostrava flores e frutos tão pequenos. Era feliz, entretanto, com suas flores e cores, ora azuis, verdes ou amarelas a predominar, dependendo da estação do ano.

Tio Roberto adormecera. Escutavam-no o roncar.

-A mangueira era dona de uma área imensa. Majestosa, logo cedo, gerou tanta sombra, que pequenos arbustos à sua volta sucumbiram por falta de sol. Muitas frutas, volta e meia, escondia em sua copa abelhas e marimbondos, que, junto com os pássaros, se serviam do açúcar que lhes ofertava tranqüila. Assaltada por crianças e adultos em busca de alimento sorria pra si mesma. Amanhã produziria mais e mais. As outras árvores frutíferas também se desenvolveram, cada uma a seu modo. Dependendo da safra, se entreolhavam enciumadas com a beleza uma das outras. Verdade que a parreira sempre foi a mais serena. Espalhada, subindo onde lhe fosse possível, por vezes se enroscava em qualquer uma das outras para sustentar-se alto do chão. Passava grande parte do ano meio “nua”, mas não dava importância a isso. Quando lhe chegavam as uvas, eram das coisas mais bonitas e desejadas do terreno. Andava preocupada ultimamente. Sem o retoque da poda e o reforço do adubo que o homem depositava à sua volta, estava ficando sem formas e até suas uvas já não eram tão viçosas, nem tinham o mesmo sabor. -”Estamos ficando velhas!”, reclamava para as outras. Esquecia de derramar seus próprios frutos ao chão tentando fertilizá-lo. O homem ainda caminhava pelo terreno, sem saber como ou por que, entendendo a linguagem de todas elas.

Havia um quê de impaciência e tédio na expressão de Marília, mas, contida, não ousava interromper.

-Talvez fosse por tê-las plantado e acompanhado seu crescer. Quem sabe não fosse nada disso, estava velho, e só pensava que as entendia. Ou, quem sabe, a vivência o fizera mais sábio do que elas. A verdade é que pensava entendê-las, e volta e meia se descobria triste por perceber seus desencantos. Então, caminhava entre elas, resmungando conselhos que de nada adiantavam. Estavam elas, cada uma a seu modo, muito preocupadas consigo mesmas. E o velho homem se questionava: -”Como é possível que não me ouçam? Afinal me deram muito trabalho, mas hoje como de seus frutos, descanso à sua sombra, faço o fogo que me aquece de seus troncos.” E assim foi por muito tempo. Um dia, já tendo o homem partido, perceberam-se todas a procurá-lo e se perguntaram: ”Quem vai agora arrancar nossas parasitas? Quem vai colher nossos frutos que pesam sobre nós? Quem vai plantar nossas sementes para que continuemos nas outras plantas que irão surgir?” Então descobriram que estavam começando a se tornar adultas, e a natureza lhes ensinou o resto.

Algumas, mais frágeis e menos dispostas, desapareceram. Outras estão por aí, até sempre. Umas, pequenas, mas inteligentes, vivem até hoje à sombra das mais fortes. O coqueiro? Está lá, compridão, ainda dando coco. Meio retorcido, desenhado pelos ventos aos quais soube se curvar sabiamente ao longo do tempo. Nunca se preocupou muito com beleza, por natureza era meio cheio de palhas, folhas que misturavam verde, amarelo e marrom. Mas, obrigadas que foram, cada uma escolheu seu caminho.

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