-Sabes Marília? Ainda que tenhas, no
passado, vivido aqui boa parte de tua vida, creio que não conheces uma
historinha interessante. É coisa contada no campo, por gente que lida com a
terra, com o plantio, os animais. Conta que um dia, em terras que possuía, um
homem resolveu plantar. Não conhecia muito a lida, mas sabia ser mais ou menos
simples conseguí-lo. E começou a trabalhar. Plantou eucaliptos, pinheiros,
cinamômos e mangueiras.
Olhava-a e seguia, com seu falar
pausado:
-Depois um coqueiro, pessegueiros,
pereiras, limoeiros, laranjeiras e uma parreira. Durante alguns anos, à medida em que ia
envelhecendo, tratou de retirar as ervas daninhas que nasciam em seu terreno,
capinando e arrancando o capim que por ventura crescesse. Quando podia, adubava
a terra sem ter a certeza de fazê-lo da forma mais adequada, afinal pouco
entendia do plantio. Mas a quem recorrer para orientar-se? Todos plantavam
árvores através dos tempos, sem terem estudado o assunto. E as plantas, de uma
forma ou de outra, cresciam. Verdade que, em alguns dos sítios, formaram-se
verdadeiras florestas, quase indevassáveis. Outros conseguiram belos pomares, e
alguns se contentavam com rasteiras hortaliças. Na grande planície, por eles
habitada, predominavam aqueles que olhavam o mato natural crescer à sua volta.
Estes últimos, quando caminhavam pelas cercanias, lançavam seu olhar de desdém
àquilo que os mais empenhados haviam obtido a custa de muita dedicação. Não
raro, se lhes estivesse ao alcance, quebravam algum galho, ou atiravam pedras em
frutos nascentes, quando não se contentavam em simplesmente arrancar ou esmagar
as flores que surgiam.
Todos escutavam. A história era, de
fato, algo como uma lenda local.
-O tempo passava, e nosso homem
envelhecia junto a suas árvores e seu terreno. Cansado, já não tinha a mesma
disposição para limpar a área. O adubo se tornara pesado para carregar até o
ponto certo e, quando ainda obtido, o era feito de forma desordenada, e em
pequenas quantidades ocasionais. Agora eram as plantas e o terreno a se
entenderem da melhor forma que a natureza lhes permitisse. De certa maneira, o
homem podia pouco mais que olhá-las, lembrar-se de quando as plantara e vira
crescer, procurando descansar à sombra maior ou menor que cada uma projetasse.
Os dois eucaliptos haviam crescido desiguais...
- Um era muito esguio, troncos um tanto
frágeis, adquiriu enorme altura. O outro custara a desenvolver-se exigindo ser
podado, pois aparentava lentidão para tornar-se adulto. Passado algum tempo
tornou-se firme, fortes galhos, folhagens espessas, boa sombra. E, quando vinha
o vento, resistia bem melhor ao açoite. Perdia menos folhas e flores. Nele, mais
facilmente, as crianças brincavam, pela firmeza e segurança que lhes transmitia.
Marília mostrava um ar de quem não
assimilava aonde se quer chegar. Mas Paulo, mesmo percebendo isto, seguia em
frente.
-Um dia, sob forte tempestade, o mais
alto falou: ”Toma cuidado. Meus troncos e folhas vão cair de mim e poderão te
cobrir, tão baixo és.” Tranqüilo, respondeu: ”Não te preocupes. Certamente
agüentarei e, no chão, teus pedaços irão deteriorar-se, me servindo de adubo.
Te ficarei grato.” No meio da tempestade um raio atingiu o mais alto,
deixando-o desfigurado e mais frágil ainda do que era sem o saber. O pinheiro,
que crescera imponente, muito mais rápido que as demais árvores, por um bom
tempo as olhava de cima, cheio de contrastes, em seus mais variados verdes dos
brotos, ou no marrom das pinhas que já formava. Nunca entendeu por que, com o passar
do tempo, fora mudando o prumo, entortando mesmo. A qualquer ventinho, fraco
que era, perdia galhos.
Além disso, quando o verde esmaecia, em
seu lugar surgia um detestável escuro, puxando a marrom, meio palha, que ele
deplorava. Foi ficando cada vez mais calado, e só o vento lhe arrancava alguns
suspiros. O cinamomo fora meio problemático. Não muito alto, desajeitado,
crescera de forma irregular, troncos tortos e cheios de nós, seus frutos feios,
quando velhos cheirando a gordura. Mas tinha raízes enormes que se espalhavam
mais imponentes, ele chegando a atrapalhar as outras árvores por perto. Era
meio contraditório. Pesadão, mostrava flores e frutos tão pequenos. Era feliz,
entretanto, com suas flores e cores, ora azuis, verdes ou amarelas a predominar,
dependendo da estação do ano.
Tio Roberto adormecera. Escutavam-no o
roncar.
-A mangueira era dona de uma área
imensa. Majestosa, logo cedo, gerou tanta sombra, que pequenos arbustos à sua
volta sucumbiram por falta de sol. Muitas frutas, volta e meia, escondia em sua
copa abelhas e marimbondos, que, junto com os pássaros, se serviam do açúcar que
lhes ofertava tranqüila. Assaltada por crianças e adultos em busca de alimento
sorria pra si mesma. Amanhã produziria mais e mais. As outras árvores
frutíferas também se desenvolveram, cada uma a seu modo. Dependendo da safra, se
entreolhavam enciumadas com a beleza uma das outras. Verdade que a parreira
sempre foi a mais serena. Espalhada, subindo onde lhe fosse possível, por vezes
se enroscava em qualquer uma das outras para sustentar-se alto do chão. Passava
grande parte do ano meio “nua”, mas não dava importância a isso. Quando lhe
chegavam as uvas, eram das coisas mais bonitas e desejadas do terreno. Andava
preocupada ultimamente. Sem o retoque da poda e o reforço do adubo que o homem
depositava à sua volta, estava ficando sem formas e até suas uvas já não eram
tão viçosas, nem tinham o mesmo sabor. -”Estamos ficando velhas!”, reclamava
para as outras. Esquecia de derramar seus próprios frutos ao chão tentando
fertilizá-lo. O homem ainda caminhava pelo terreno, sem saber como ou por que,
entendendo a linguagem de todas elas.
Havia um quê de impaciência e tédio na
expressão de Marília, mas, contida, não ousava interromper.
-Talvez fosse por tê-las plantado e
acompanhado seu crescer. Quem sabe não fosse nada disso, estava velho, e só
pensava que as entendia. Ou, quem sabe, a vivência o fizera mais sábio do que
elas. A verdade é que pensava entendê-las, e volta e meia se descobria triste
por perceber seus desencantos. Então, caminhava entre elas, resmungando
conselhos que de nada adiantavam. Estavam elas, cada uma a seu modo, muito
preocupadas consigo mesmas. E o velho homem se questionava: -”Como é possível
que não me ouçam? Afinal me deram muito trabalho, mas hoje como de seus frutos,
descanso à sua sombra, faço o fogo que me aquece de seus troncos.” E assim foi
por muito tempo. Um dia, já tendo o homem partido, perceberam-se todas a
procurá-lo e se perguntaram: ”Quem vai agora arrancar nossas parasitas? Quem
vai colher nossos frutos que pesam sobre nós? Quem vai plantar nossas sementes
para que continuemos nas outras plantas que irão surgir?” Então descobriram que
estavam começando a se tornar adultas, e a natureza lhes ensinou o resto.
Algumas, mais frágeis e menos
dispostas, desapareceram. Outras estão por aí, até sempre. Umas, pequenas, mas
inteligentes, vivem até hoje à sombra das mais fortes. O coqueiro? Está lá,
compridão, ainda dando coco. Meio retorcido, desenhado pelos ventos aos quais
soube se curvar sabiamente ao longo do tempo. Nunca se preocupou muito com
beleza, por natureza era meio cheio de palhas, folhas que misturavam verde,
amarelo e marrom. Mas, obrigadas que foram, cada uma escolheu seu caminho.
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