terça-feira, 2 de julho de 2013

Caleidoscópio (o reencontro com Sara)


Sara acordou cedo e se veste apressada. Chegou à noite, mal teve tempo para dormir um pouco e não deseja demorar-se mais do que o necessário. Está hospedada na casa de amigos. Amigos com quem, mesmo se correspondendo ao longo de tantos anos, não imaginava se reencontrar. Antes de sair para apanhar um táxi, telefona rápido. Em casa, Mário Ávila a espera. De início levou um susto, achando que Sara pudesse estar em apuros outra vez. Quando chega, é ele que lhe abre a porta. Se abraçam forte e passam à sala.

-Você está ótima. Continua bonita.

-E você continua insinuante. Mas tenho que reconhecer que também está forte e inteiro.

-Como vai o Fernando?

-Está bem Mário. Agora trabalhando normalmente, recuperado de suas neuroses que tanto nos deram trabalho. Creio que você saiba quantas seqüelas ficaram da prisão.

Fernando fora mais um dos revolucionários de l935. Detido na época, sofrera muito em mãos da polícia. Homem íntegro, resistiu a tudo, sem nunca comprometer qualquer companheiro. Junto com Marighela, era tido como um dos milagres de sobrevivência às torturas impostas pelos subordinados de Filinto Miller.

-E você Sara, como tem levado a vida? Ainda ativa?

-Não Mário. A partir de um momento eu tinha que optar. Tenho dois filhos, Eurico e Leonardo. Já sou avó. Ficava difícil manter uma família e a atividade que estava acostumada. Me recolhi. Mas não deixei nem deixarei nunca de socorrer os companheiros que volta e meia procuram ajuda. Alguma coisa parecida com o que você sempre fez.

-Você tem razão. Lembro do Zé me falando algo parecido. Ele também está em Porto Alegre, com muitos filhos. Já faz algum tempo que não tenho notícias dele.

-Sei disso. Já nos encontramos. Conheci a Eugênia, sua esposa. Não esqueço que nos conhecemos porque foi ele quem indicou você para vir me buscar.

Fala com a serena firmeza que sempre a caracterizou.

-A vida é como um prato fundo cheio de bolinhas de gude. Mexendo o prato, as bolinhas saem do lugar, se afastam e na seqüência dos movimentos se encontram de novo. Enquanto o movimento persistir, continuaremos a nos distanciar e nos aproximarmos outras vezes.

-Você me falou ao telefone que tínhamos algo importante para resolver. Pode me dizer do que se trata?

Sara ajeita-se na cadeira. Ao dizer-lhe que continuava bonita, Mário não o fizera para agradá-la. A vida, mesmo tumultuada que tivera, não tinha agredido sua figura. E sem desejar que ela percebesse e pudesse se ofender por isso, Mário a observava atento. Guardava dela lembranças que nunca o perturbaram.

-Bem, então vamos ao que interessa.

Sara começou a falar novamente. Conversaram algumas horas. Quase trinta anos passados a limpo. E a vivência comum de momentos que ficariam com eles para o resto da vida.

-Não se preocupe. Viaje tranqüila. Necessito de alguns dias para acertar tudo. Mando avisar quando tenha resolvido.

Despediram-se e Sara voltou a Porto Alegre.

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