Sara acordou cedo e se veste apressada.
Chegou à noite, mal teve tempo para dormir um pouco e não deseja demorar-se
mais do que o necessário. Está hospedada na casa de amigos. Amigos com quem,
mesmo se correspondendo ao longo de tantos anos, não imaginava se reencontrar. Antes
de sair para apanhar um táxi, telefona rápido. Em casa, Mário Ávila a espera.
De início levou um susto, achando que Sara pudesse estar em apuros outra vez. Quando
chega, é ele que lhe abre a porta. Se abraçam forte e passam à sala.
-Você está ótima. Continua bonita.
-E você continua insinuante. Mas tenho
que reconhecer que também está forte e inteiro.
-Como vai o Fernando?
-Está bem Mário. Agora trabalhando
normalmente, recuperado de suas neuroses que tanto nos deram trabalho. Creio
que você saiba quantas seqüelas ficaram da prisão.
Fernando fora mais um dos revolucionários
de l935. Detido na época, sofrera muito em mãos da polícia. Homem íntegro, resistiu
a tudo, sem nunca comprometer qualquer companheiro. Junto com Marighela, era
tido como um dos milagres de sobrevivência às torturas impostas pelos
subordinados de Filinto Miller.
-E você Sara, como tem levado a vida?
Ainda ativa?
-Não Mário. A partir de um momento eu
tinha que optar. Tenho dois filhos, Eurico e Leonardo. Já sou avó. Ficava
difícil manter uma família e a atividade que estava acostumada. Me recolhi. Mas
não deixei nem deixarei nunca de socorrer os companheiros que volta e meia
procuram ajuda. Alguma coisa parecida com o que você sempre fez.
-Você tem razão. Lembro do Zé me
falando algo parecido. Ele também está em Porto Alegre , com
muitos filhos. Já faz algum tempo que não tenho notícias dele.
-Sei disso. Já nos encontramos. Conheci
a Eugênia, sua esposa. Não esqueço que nos conhecemos porque foi ele quem
indicou você para vir me buscar.
Fala com a serena firmeza que sempre a
caracterizou.
-A vida é como um prato fundo cheio de
bolinhas de gude. Mexendo o prato, as bolinhas saem do lugar, se afastam e na
seqüência dos movimentos se encontram de novo. Enquanto o movimento persistir,
continuaremos a nos distanciar e nos aproximarmos outras vezes.
-Você me falou ao telefone que tínhamos
algo importante para resolver. Pode me dizer do que se trata?
Sara ajeita-se na cadeira. Ao dizer-lhe
que continuava bonita, Mário não o fizera para agradá-la. A vida, mesmo
tumultuada que tivera, não tinha agredido sua figura. E sem desejar que ela
percebesse e pudesse se ofender por isso, Mário a observava atento. Guardava
dela lembranças que nunca o perturbaram.
-Bem, então vamos ao que interessa.
Sara começou a falar novamente.
Conversaram algumas horas. Quase trinta anos passados a limpo. E a vivência
comum de momentos que ficariam com eles para o resto da vida.
-Não se preocupe. Viaje tranqüila.
Necessito de alguns dias para acertar tudo. Mando avisar quando tenha
resolvido.
Despediram-se e Sara voltou a Porto
Alegre.
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