Anna, de Amsterdam
Em 1983 conheci o Murillo. Eu, novato, Gerente da Capemi em uma Regional sediada em Recife, ele Gerente de Marketing, na sede da São Clemente, no Rio de Janeiro. Em sua equipe, que, como a minha, era chefiada pelo Delmas, outra figura impar, estavam o Mauro, amigo velho, a quem reencontrava por ali, um dos mais provocadores baixinhos que conheci na vida, Garcez, que, descalço, perdia muita altura, pois usava bota de cowboy, Ferraço, uma pessoa belíssima, gente fina, mas com cara de mau, e diversos outros, com quem não cheguei a estabelecer maiores laços.
O Gerente Geral da Regional de Recife era o José Maria, boêmio dos bons, um Popeye verdadeiro, fumando seus três a cinco maços de cigarro todo dia, acendendo um no outro, e que bebia uísque cowboy e chope simultaneamente. Mas, além de grande alma, um companheiro constante nas noites de serestas, que podiam acontecer em qualquer bar ou boteco, não importando se em local mais ou menos classudo. O que valia era nossa interação e a cantoria, compostas de muito Nelson Gonçalves, muito Altemar Dutra, muito Cauby Peixoto, só para lembrarmos os mais cantados.
E, reunimo-nos todos na sede campestre da Capemi, na estrada dos Bandeirantes, à ocasião, simplesmente citada como “ficando em Jacarepaguá”. Chegar até ela custava uma viagem! Nela permanecer, uma arte. Tínhamos um belo campo de futebol, que existe até hoje, passados incríveis trinta anos, as acomodações compostas de pequenos apartamentos para duas ou quatro pessoas em cada um, um bom refeitório, e um grande salão para reuniões, que continha palco, equipado com o que havia de melhor para apresentações. Era preciso ser forte para, depois do almoço, encarar a sonolência do início dos debates da tarde.
Como disse Roberto, o Rei, belos tempos... belos dias. O Delmas, coronel da reserva, como o José Maria, era quem se auto proclamava encarregado da disciplina. E, invariavelmente, o juiz das partidas de futebol ao final das tardes, quando se registrava tudo que seria possível imaginar em crimes futebolísticos. Um grupo de pernas de pau, alguns com a barriga maior que a bola, outros, “furões” por intuição, e – entre estes – eu, que jogava sempre de goleiro, para não passar vergonha na linha. Além do que, uma posição ingrata, para a qual não havia concorrência. Assim, eu era um dos poucos que jogava a partida inteira.
Em um destes dias, dois filhos do Murillo, Marcelo e Mauricio, que – se não me falha a memória – tinham 15 e 13 anos de idade, na hora do almoço, sentaram a um canto do refeitório e ficaram tocando violão e cantando para nós. Magricelas, muito novos ainda, uns guris mesmo, encararam o desafio, cheios de coragem. Cantaram afinados, e encheram Murillo de uma contagiante e orgulhosa alegria. Não havia como não perguntar por eles a cada vez que, passado algum tempo, voltávamos a nos encontrar, fosse no Rio de Janeiro, fosse em Recife, em alguma ocasional viagem do Murillo. E, em final de 1987, tendo saído da Capemi em 1986, trabalhando na IOB, sou transferido para esta capítal da beleza do mundo.
Realizava um sonho alimentado desde meus quinze anos! Quanto havia me apaixonado por esta cidade quando a vi vez primeira! Quanto andei, absorto e totalmente encantado, pelas ruas da Copacabana de então, que ainda tinha o Arpége, o Galo Dançante, o Beco das Garrafas, e tantos outros lugares que encantavam o forasteiro. Lugares em que se podia encontrar um Waldir Calmon, um Dick Farney, um Baden Powell, uma Elizete Cardoso, um Vinicius, com ou sem o Tom Jobim a acompanhá-lo, e tantos outros, em um simples fim de noite, de graça, eles apenas tentando se divertir.
Eu, que tantas vezes, a trabalho ou a passeio, por aqui estivera a perambular. Eu que, a cada vinda, aumentava meu amor por esta cidade, por sua gente feliz, por sua lindeza grandiosa, por sua imponente, privilegiada e poliglota natureza. Eu que, amante de praia e de música, aqui me sentia o próprio pinto no lixo. E, finalmente, premiado pela vida, encerrava minha carreira de cigano pelas trilhas do Brasil. Sim, porque depois de conseguir vir para cá, sair, só se fosse preso! E, como todo cara que chega a algum lugar, trabalhava com dedicação, mas tentava, nas horas de folga, restabelecer meus laços com alguns dos amigos que já fizera.
Com José Maria, comecei a freqüentar a Tijuca, onde em dois dias da semana, em um improviso de bar, onde existira uma oficina, em uma das esquinas da Maxwell, se dispunha de nossa boa e gostosa seresta, da qual, é claro, participávamos ativamente. E, levado por uma circunstância de trabalho, fui fotografado, e minha foto estampada em todos os maiores jornais do país, em uma campanha publicitária que promovia nossa empresa de consultoria empresarial. Com isso, ex-companheiros, alguns que comigo haviam convivido desde Porto Alegre, ainda fim dos anos sessenta, início dos anos setenta, me descobriram no Rio.
Vivi dias de grandes surpresas e de imensa felicidade. Independente de tudo, me sentia querido. E, em um destes dias a que me refiro, frente a mim, no escritório da Rua Goiania, onde está a quadra da escola de samba Salgueiro, me surge Mauricio Miranda, agora um homem, filho do grande Murillo, para dizer-me que gostaria de poder trabalhar como vendedor de minha equipe. Conversamos. Soube que ainda cantava. Tinha sonhos, como seu outro irmão, Marcelo. Mas tinha que ganhar a vida. A música ainda não o sustentava. Ou, foi a partir de meu reencontro com Murillo, que chamei Marcelinho, como o tratava, para cantar em uma nossa convenção.
Não me importa muito o que ocorreu primeiro. A memória pode falhar, traída pela emoção. O que importa é que estava, mais uma vez, a conviver com um cara fantástico, um amigo do peito, um irmão maior, com seus filhos, alguns começando a tentar os primeiros passos em suas carreiras musicais. E, para meu orgulho, um deles era (ainda o é) meu tocaio, meu xará, como se fala no Rio de Janeiro. Enfim, Marcelo tocou no Hotel Bucsky, em Niterói, e Mauricio, além de vir trabalhar comigo, devido minha amizade e interação com Carlos Matta “Pulinho”, o maestro da banda do hotel, começou, nos finais de semana, a fazer os “intervalos” na boate.
Mas, final de 1991, resolvo voltar-me a projeto pessoal. Monto minha empresa, mudo da Tijuca para Ipanema, e encaro novos desafios, agora no turismo. Ainda assim, mantenho minhas ligações. Marcelinho lança um seu disco, creio que ainda noivo de sua Giselle, disco que uso, a exemplo do que já fizera com o amigo Luiz Carlos Vinhas, para promover minha agência, tentando, ao mesmo tempo, ajudar o passo encarado pelo jovem e promissor talento, me fazendo presente, inclusive, no show de lançamento, no Mistura Fina. E, neste caminhar pela vida, lá estávamos, mais uma vez, Murillo e eu, entrelaçados pelo destino.
Reencontrei Mauricio, em uma das vezes, cantando no Rio Sul, eu com Aninha, felizes ao vê-lo, já por conta própria, a encaminhar-se. E, tempos depois, não sei precisar quanto, o reencontramos novamente, quando nos fala que está a cantar em um belo lugar – esqueci o nome – no Alto da Boa Vista. Bem, o que importa é que, ao longo das voltas que a vida dá, por anos a fio, estivemos a assisti-lo, ou ao Marcelo, por diversos bares e boates da cidade, claro, aproveitando os momentos alegres para rever Murillo e sua Anna, musa e companheira inseparável. Ultimamente, no Kaçuá, dos também amigos Cesar e Bruno, onde me considero sócio honorário. E, no Kaçuá, não tenho certeza se data de seu aniversário ou não, estive com Murillo e Anna a última vez.
No facebook, outro dia, me surpreendi, ao encontrar e rever longa série de fotos, de Murillo e Anna passeando pela Europa. Portugal, com os filhos, noras e netos. Me deu saudade da Lisboa que tanto conheço, de Coimbra, d’O Porto, de Cascais, ah... Cascais, das pequenas praias e grandes cassinos, saudades do Portugal cordial e receptivo, sempre amigo, na visão simples desse povo irmão. De repente, me deparo com Praga, cidade dos vitrais, lindos, deslumbrantes, obras de arte que o tempo só faz valorizar, como se o Murillo, para provocar-me, me falasse: - Olha Victor, como é bela, ainda e sempre, a Capital de Cristal! E lhe senti ciúmes, afinal, há alguns anos não vou à Europa. Mas continuei a encarar o desafio, caminhando por suas imagens, cheias de alegria, passando muito da emoção do casal.
E, em minha mente, continuo a escutá-lo: - Amigo Victor, Paris continua bela e atraente, de dia, de noite, pela manhã, em seus cafés e rotisseries tradicionais. A Champs Elisée, com suas grandes calçadas invadidas pelas mesas, o Arco do Triunfo, a Rue de Montmarte, a Montmarte Boulevard das músicas que cantam a cidade. O Museu de Cera, a Galerie Lafayette, por onde passamos, mas que atrai pelo charme e sua história. Na verdade temos lojas tão atraentes quanto, seja no Rio, em São Paulo e mais algumas de nossas capitais. O Jardin des Tuilleries, este sim, um passeio inesquecível e uma bela pintura que o homem apenas ajuda a manter, a partir da natureza que o propiciou. O Louvre... Notre Damme... o Quartier Latin... o Sena, dançando suave nos cortes que faz pela cidade, ajudando-nos a vê-la sob os ângulos mais distintos possíveis.
Então, volto no tempo, e músicas – claro – me vêm à lembrança, afinal, Murillo e Anna são fabricantes de músicos! ... Montmartre Boulevard... alegre despertar... um sonho, um riso, um verso diz.. lembranças de Paris (A última vez que vi Paris, trilha sonora de filme com o mesmo nome, da década de 50!!!), ou, ... douce France... chére páis de mon enfance..., ou,... um jour tu veras... la main sur la main, par les rues nous iron... (Jaqueline François, grande cantora e sucesso das décadas de 50 e 60, em músicas que retratavam o amor em Paris, todas a cara de Murillo e Anna!). Não consigo evitar que Maurice Chevalier, Charles Aznavour (Armênio, mas Francês de coração), Charles Trenet, Yves Montand (que grande cantor e ator!!!), Brigitte Bardot (na França ou em nossa Búzios), passem a dançar em volta de mim. Ah.. a Paris de nossa juventude, dos filmes sobre o Folies Bergéres, do Cancan, das baguetes, dos croissants, da França dos vinhos e castelos....
E, sem que o queira, sem que sequer o saiba, Murillo me grita: - Victor, volte a esta Europa, tão cheia de história e de coisas que nos impressionam, pela grandiosidade, pelo requinte de suas construções seculares, pelo seu Tâmisa revivido, exemplo para o mundo de que é possível dar uma mão à natureza, hoje sucumbindo às mazelas humanas. Aqui também há desemprego, certamente também há corrupção, aqui neva no inverno, e – volta e meia – até vulcões se manifestam. Mas a Europa é um grande livro da história do mundo, pelo qual podemos caminhar, curtindo cada cena apresentada. E, não se esqueça, de Barcelona, de certa forma, o Rio de Janeiro europeu, em um pulo rápido, estamos na Grécia! Na Atenas dos Deuses e da Mitologia! Não esqueça, Victor, tendo um tempinho, passa por aqui, onde tudo aconteceu, mas parece que o tempo não passa.
Tem razão o Murillo. A Europa, berço da civilização, criadora dos bons costumes, ora invasora, ora invadida, como o fizeram os Mouros, é, na verdade, uma grande colcha de retalhos, em que se entreveram folclores, culinária, música e arte de multi origens. É tudo que esperamos dela, mas terá sempre algo mais a ser descoberto, como o fazem Murillo e Anna, em dias de muito amor à flor da pele, como se – novamente – garotos fossem, apaixonados, corações batendo agitado, os rostos enrubecidos, ao trocarem o beijo roubado, retrato da felicidade que lhes é companheira inseparável. E, à medida que chego ao final das imagens, ainda tenho tempo de ouvi-lo mais uma vez: - É isso, amigo Victor, estamos passeando juntos, mais uma vez, agora atravessando pontes e canais, jardins imensos, de flores pintadas nas mais belas cores, e uma arquitetura peculiar nos rodeando. Grande abraço, Victor, de seu amigo Murillo, com Anna, de Amsterdam.