terça-feira, 6 de agosto de 2013

Caleidoscópio: cena de uma despedida em Copacabana

Mário Ávila acordara cansado. Mais do que nos últimos dias. Apesar de não ter fumado depois do café, sentia a respiração difícil e suava um pouco. Foi até o janelão da sala e o abriu por inteiro. Cada lado que afastou lhe pareceu ter mais peso do que de costume. Arfava. Olhou para a avenida, atravessou-a com os olhos, chegando à praia que aprendera a amar tanto.
Ali, naquelas areias revoltas pelos pés que iam e vinham em todas as direções, muito conversara com amigos, com os filhos e netos. Observando-os, cada um a seu tempo, muito aprendera com eles nas reações distintas de cada fase da vida, nas palavras, ora cheias de romantismo, euforia ou sentimentalismo. Copacabana exercia um encanto inegável a quem quer que fosse, pelo fulgor da manhã ou pelos belos quadros que a natureza pintava em seus crepúsculos.
Em suas calçadas desenhadas os jovens descobriam o amor, nas areias as primeiras reações da sexualidade sadia, traduzida nos trajes sumários e na postura descontraída. Em suas águas generosas os pescadores penetravam, para delas roubar os peixes muitos, que se ofereciam indefesos. De suas janelas, como ele fazia agora, muitos poetas e cronistas encontraram a inspiração para registrar a vida que irradiava. E mesmo quando palco de luta, proporcionou a seus heróis um cenário do qual poucos além dos Dezoito poderiam se orgulhar de ter utilizado.
Se fosse uma mulher, impossível ter dono. Seria a mais pura, a mais desejada e a mais mundana de todas quanto houvessem existido. Tantos desejos, tantos amores, tantas declarações teria ouvido em sua plácida languidez, assim solta, ao alcance de todos quanto a quisessem ver e tocar. Mesmo quando agredida pelo homem, afoito em dar-lhe novos contornos, ou pela natureza em dias de mau humor, sempre soubera se refazer absoluta, rainha cantada princesa, altiva e cativa de todos quantos a conheceram e amaram, para nunca mais esquecê-la.
A brisa perfumada que penetrava a janela ajudou Mário Ávila a sonhar um pouco, mas não aliviou seu mal-estar. Seu coração parecia bater descompassado. Voltando-se para o espelho, acima do balcão, percebeu-se pálido. Apanhou o telefone e ligou para Márcio.
- Meu filho, não acordei muito bem. Vou chamar meu médico. Gostaria que pudesses vir até aqui...
Do outro lado do fio escutou a preocupação e a surpresa com que Márcio reagia a suas palavras. Tentou tranqüilizá-lo:
- Eu sei que pode ser grave, mas não te assustes. Vem com calma.
Tão logo desligou, discou para o cardiologista. Depois de falar-lhe foi até seu quarto, apanhou dois travesseiros e trouxe-os para o sofá da sala. Colocou os óculos, buscou sua agenda e, recostando-se, começou a escrever com a rapidez que suas frágeis reações permitia. Assim o médico o encontrou ao chegar.
Márcio observava o pai, enquanto o doutor Bezerra o examinava calado e tranqüilo, como era seu costume. Tirou-lhe a pressão, auscultou-o, fez-lhe algumas perguntas. Pediu-lhe que mexesse as mãos, os braços e as pernas. Guardou seus instrumentos. Sentou-se e olhou para Mário e Márcio:
- Meu caro amigo, você está com um início de infarto. O melhor, neste caso, é que o levemos para o hospital. Faremos exames mais detalhados e precisos. Aí, veremos o que é necessário.
Levantou-se, apanhou sua pequena maleta e, agora falando para Márcio, disse:
- Ajude seu pai a fazer tudo com calma. Não lhe permita esforço maior. Não precisa sair correndo, mas não se demore. Estarei no hospital aguardando.
Mário Ávila sentou-se. Abotoou a camisa. Apanhou a agenda e a caneta que havia soltado. Levantou-se.
- Bem, meu filho, vou trocar de roupa e separar um pijama.
Márcio o acompanhou, um passo atrás, tentando observar o pai, para melhor avaliar como poderia estar. Ainda que o tempo tivesse passado, lhe era impossível ver o pai como o homem baqueado que caminhava à sua frente. Acostumara-se a vê-lo um forte.
A idade não lhe roubara a lucidez, nem a decisão clara e precisa. Mesmo fisicamente, nunca demonstrara cansaço, salvo se lhes houvesse escondido reações. Caminhava lépido, falava rápido, seus gestos eram firmes. Seu senso de observação continha a mesma argúcia de sempre, nada deixando escapar, ainda que soubesse guardar suas observações para quando fosse necessário traduzi-las.

Para um homem com mais de setenta anos, mostrava bons músculos e resistência. No clube, dava suas braçadas na piscina, jogava sua meia hora de tênis, comia praticamente de tudo. Só agora, olhando-o a caminhar para seu quarto, mais lento do que lhe era característico, como a medir cada passo, Márcio percebia que o pai envelhecera. E o olhou com um tipo de afeto que nunca se percebera sentir. Uma mistura de respeito, carinho e admiração. Como a admitir para si mesmo que, pela primeira vez, era o pai a necessitar de sua ajuda.

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