Mário Ávila acordara cansado. Mais do
que nos últimos dias. Apesar de não ter fumado depois do café, sentia a
respiração difícil e suava um pouco. Foi até o janelão da sala e o abriu por
inteiro. Cada lado que afastou lhe pareceu ter mais peso do que de costume.
Arfava. Olhou para a avenida, atravessou-a com os olhos, chegando à praia que
aprendera a amar tanto.
Ali, naquelas areias revoltas pelos pés
que iam e vinham em todas as direções, muito conversara com amigos, com os
filhos e netos. Observando-os, cada um a seu tempo, muito aprendera com eles
nas reações distintas de cada fase da vida, nas palavras, ora cheias de
romantismo, euforia ou sentimentalismo. Copacabana exercia um encanto inegável
a quem quer que fosse, pelo fulgor da manhã ou pelos belos quadros que a
natureza pintava em seus crepúsculos.
Em suas calçadas desenhadas os jovens
descobriam o amor, nas areias as primeiras reações da sexualidade sadia,
traduzida nos trajes sumários e na postura descontraída. Em suas águas
generosas os pescadores penetravam, para delas roubar os peixes muitos, que se
ofereciam indefesos. De suas janelas, como ele fazia agora, muitos poetas e
cronistas encontraram a inspiração para registrar a vida que irradiava. E mesmo
quando palco de luta, proporcionou a seus heróis um cenário do qual poucos além
dos Dezoito poderiam se orgulhar de ter utilizado.
Se fosse uma mulher, impossível ter
dono. Seria a mais pura, a mais desejada e a mais mundana de todas quanto
houvessem existido. Tantos desejos, tantos amores, tantas declarações teria
ouvido em sua plácida languidez, assim solta, ao alcance de todos quanto a
quisessem ver e tocar. Mesmo quando agredida pelo homem, afoito em dar-lhe
novos contornos, ou pela natureza em dias de mau humor, sempre soubera se
refazer absoluta, rainha cantada princesa, altiva e cativa de todos quantos a
conheceram e amaram, para nunca mais esquecê-la.
A brisa perfumada que penetrava a
janela ajudou Mário Ávila a sonhar um pouco, mas não aliviou seu mal-estar. Seu
coração parecia bater descompassado. Voltando-se para o espelho, acima do
balcão, percebeu-se pálido. Apanhou o telefone e ligou para Márcio.
- Meu filho, não acordei muito bem. Vou
chamar meu médico. Gostaria que pudesses vir até aqui...
Do outro lado do fio escutou a
preocupação e a surpresa com que Márcio reagia a suas palavras. Tentou
tranqüilizá-lo:
- Eu sei que pode ser grave, mas não te
assustes. Vem com calma.
Tão logo desligou, discou para o
cardiologista. Depois de falar-lhe foi até seu quarto, apanhou dois
travesseiros e trouxe-os para o sofá da sala. Colocou os óculos, buscou sua
agenda e, recostando-se, começou a escrever com a rapidez que suas frágeis
reações permitia. Assim o médico o encontrou ao chegar.
Márcio observava o pai, enquanto o
doutor Bezerra o examinava calado e tranqüilo, como era seu costume. Tirou-lhe
a pressão, auscultou-o, fez-lhe algumas perguntas. Pediu-lhe que mexesse as
mãos, os braços e as pernas. Guardou seus instrumentos. Sentou-se e olhou para
Mário e Márcio:
- Meu caro amigo, você está com um
início de infarto. O melhor, neste caso, é que o levemos para o hospital.
Faremos exames mais detalhados e precisos. Aí, veremos o que é necessário.
Levantou-se, apanhou sua pequena maleta
e, agora falando para Márcio, disse:
- Ajude seu pai a fazer tudo com calma.
Não lhe permita esforço maior. Não precisa sair correndo, mas não se demore.
Estarei no hospital aguardando.
Mário Ávila sentou-se. Abotoou a
camisa. Apanhou a agenda e a caneta que havia soltado. Levantou-se.
- Bem, meu filho, vou trocar de roupa e
separar um pijama.
Márcio o acompanhou, um passo atrás,
tentando observar o pai, para melhor avaliar como poderia estar. Ainda que o
tempo tivesse passado, lhe era impossível ver o pai como o homem baqueado que
caminhava à sua frente. Acostumara-se a vê-lo um forte.
A idade não lhe roubara a lucidez, nem
a decisão clara e precisa. Mesmo fisicamente, nunca demonstrara cansaço, salvo
se lhes houvesse escondido reações. Caminhava lépido, falava rápido, seus
gestos eram firmes. Seu senso de observação continha a mesma argúcia de sempre,
nada deixando escapar, ainda que soubesse guardar suas observações para quando
fosse necessário traduzi-las.
Para um homem com mais de setenta anos,
mostrava bons músculos e resistência. No clube, dava suas braçadas na piscina,
jogava sua meia hora de tênis, comia praticamente de tudo. Só agora, olhando-o
a caminhar para seu quarto, mais lento do que lhe era característico, como a
medir cada passo, Márcio percebia que o pai envelhecera. E o olhou com um tipo
de afeto que nunca se percebera sentir. Uma mistura de respeito, carinho e
admiração. Como a admitir para si mesmo que, pela primeira vez, era o pai a
necessitar de sua ajuda.
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