domingo, 18 de agosto de 2013

Caleidoscópio: a vida, passando de pai para filho

Mário Ávila se reúne com os filhos na casa de Belém Novo, agora sede de suas propriedades, restritas a estas e a Tapes. Quer conversar com eles antes de viajar. Crê importante trocarem algumas idéias sobre como as coisas andarão daqui em diante. Marília já está no Rio. Adiantou-se ao pai, aproveitando para tirar umas férias mais longas, e conhecer a cidade em companhia de Márcio e Lauro.
- Bem, está chegando a hora. Vamos lá. Traz o chimarrão, Ricardo. Vai ajudar nosso raciocínio.
Paulo já está à frente do pai. Olha-o, sentindo um quê de saudades. Ama-o, amigo que sempre lhe foi. E o entende, por vezes levando algum tempo para conseguí-lo. Sabe merecer-lhe muita confiança.  Ricardo chega com o mate, puxa a cadeira, e também senta, fechando o círculo em volta da mesinha aonde apóia a chaleira.
- Pronto pai. Pode falar. Quem bebe o primeiro?
E passa a cuia, já servida, para o pai.
- Não sei como chamo vocês, se, de meninos, rapazes ou senhores. Na verdade, não me preocupo muito. Sei que posso viajar tranqüilo, deixar tudo sob a responsabilidade dos dois. Ainda que os mais velhos sejam Márcio e Lauro, foi com vocês que sempre contei mais em nosso trabalho. Eles não desenvolveram a mesma afinidade com esta lida do campo e dos animais. Vocês são mais dispostos, em alguma proporção, mais humildes, e mais que isso, com mais vontade de aprender e de tentar fazer o que aqui se faz. Estou feliz por sentir o que sinto hoje. Agora chegou a hora em que preciso dizer-lhes isso.
Sorve um gole do chimarrão, olha os filhos com serenidade:
- Aqui cresci, conheci meus amigos, e participei de muitas lutas, mas, aprendi a amar esta terra tão fértil, que hoje guarda muito da vida de algumas gerações de nossa família. Chegou, entretanto, um tempo em que sinto precisar mudar de ares. Já tive momentos em que pensei no risco de nenhum dos meus filhos se adaptar a esta vida. Com vocês nem sempre concordei em tudo, ao menos no início. Mas verdade que, na maioria das vezes, nos entendemos e continuamos nosso caminho de forma harmoniosa. Tenho aprendido muito com vocês e com seus irmãos, com sua juventude, malandragem, astúcia sadia. Tenho tentado lhes passar um pouco do que sei, fruto de minha vivência, viagens, conhecimento, e participação nos fatos e nos negócios. Do que absorvi com amigos e companheiros.
Apanha um cigarro, acende-o, e continua:
-  Alguns muito contribuíram com sua lealdade, outros me decepcionaram pela fraqueza e falta de dignidade. Bem sei que, por momentos, terão duvidado de minhas sugestões ou conselhos. Também eu, ainda jovem, me julguei sabendo mais que os mais velhos. Daqui a algum tempo, algumas mancadas adiante, algumas dores afogadas no peito, algumas alegrias e satisfações vividas, com certeza, chegarão a conclusões parecidas com às que cheguei. Vive-se aprendendo. Há, entretanto, uma coisa que vale mais que qualquer outra, e que nos ajudou a sermos o que somos hoje, é énossa união. Esta é, sem dúvida, a grande verdade, e o grande segredo, de quem quer ser forte.
Os filhos o escutam, atentos.
-  Não permitam que os fatos, as dificuldades, ou as discordâncias que possam advir-lhes, causem seu afastamento ou estremeçam seu bem querer. Tu, Paulo, tens um estilo, Ricardo outro. Com cada um já falei a respeito. Vocês se somam, não competem. Querem coisas que não se chocam. Ambos gostam de trabalhar, e o fazem bem feito, em áreas distintas. Da harmonia que conseguirem virá o melhor resultado. São, ambos, homens de bons propósitos, de bons sentimentos, um mais sereno, mas com limites bem definidos, o outro um pouco mais afoito, mais imediatista na sua indignação, mas, ambos com claras e positivas intenções , sabendo aonde querem chegar, e com boa noção de tempo quanto a esperar por seus efeitos. Um é mais voltado para o conjunto dos resultados, o outro mais detalhista, minucioso, preocupado com a primeira impressão, com a aparência. Um mais ligado para o planejamento a longo prazo, o outro interessado em ver as coisas acabadas, a cada etapa que se encerra.
Respira, bate a cinza que cresce no cigarro à sua mão:
- Se souberem somar as virtudes, e se alertarem quanto aos possíveis defeitos, que certamente possuem, formarão uma dupla invariavelmente vencedora. Se permitirem que, entre os dois, seja jogado o veneno da discórdia, do ciúme, ou da inveja, estarão irremediavelmente perdidos. Terão que tomar, por ora, um cuidado. Como ainda são muito jovens, serão sempre questionados quanto à competência e seriedade. Isso não os deve deixar contrariados. É um vício dos mais velhos. Pensem bem. Se olharem para um menino de quinze anos , vão achá-lo um garoto, assim como, há cinco ou seis anos, quando tinham a idade dele, pensavam que quem já tivesse vinte era muito velho. Assim será por muito tempo, até que atinjam uma idade, que não sei dizer-lhes exatamente qual é, mas é quando os homens passam a se respeitarem por igual, como se admitindo que são todos adultos e responsáveis. Até lá, alguns anos irão se passar e vocês saberão perceber quando este momento chegou.
Mário fala pausado, pensando bem antes de continuar:
- Sentimos isso no trato que nos dão os outros, na maneira que nos olham e nos ouvem, no modo que nos cumprimentam ao passarmos. Queiram sempre chegar aonde se determinaram, mas guardem de forma carinhosa a noção de tempo para conseguí-lo. Ambos sabem dirigir um automóvel. Verão que podemos aprender muito enquanto guiamos um carro. Dirigir é um exercício de vida, de contínua descoberta.
Paulo e Ricardo escutam atentos. Haviam aprendido a gostar de ouvir seu pai a falar.  Tinha entusiasmo e coerência no que dizia. Não era homem de dizer sem pensar. Se, em algum momento, ofendesse, podia-se ter a certeza de que o fizera com a intenção deliberada de ferir. Não permitia que lhe escapassem as palavras sem burilá-las para atingir a clareza desejada. Falava muito quando necessário, talvez porque fosse um tranqüilo e atento ouvinte quando a ele se dirigiam. E possuía uma noção muito apurada de oportunidade. Sabiam-no, em certas ocasiões, esperar dias, meses, se necessário, para não desperdiçar suas opiniões por inadequadas ou abruptas.
Os ensinara com exemplos, a todo instante, a serem observadores, mesmo enfrentando a dificuldade de estar em uma situação e ter que analisá-la, como se dela não participassem. 
- Vejam o que lhes vem à mente ao quererem ultrapassar outro carro em uma estrada. Não é a força que precisam no carro de vocês para isso? E, se um caminhão lhes dá uma fechada, não têm vontade de enfrentá-lo, e empurrá-lo para fora da estrada? O outro carro, se tiver motor para isso, será ultrapassado, mas o caminhão não. Tentar fazê-lo seria uma loucura. Ele é maior. Não há como enfrentá-lo. Assim, o melhor é esquecê-lo, ou esperar pelo dia em que, quem sabe, tenhamos nas mãos outro caminhão.
Sorriu para os filhos. Os percebia entendê-lo:
- E o carro que podemos ultrapassar? Não é só querer e poder. É preciso aguardar o momento adequado, aonde a estrada nos permita ver adiante, aonde tenhamos espaço, com folga para passar por ele, mesmo que ele tente evitar isso aumentando sua velocidade. Ou seja, temos que estar dispostos a fazer um esforço maior naquele momento. Caso contrário, corremos o risco de não obter sucesso em nosso plano. A vida tem disso. Parece muito simples. Não é tão fácil assim. Vemos gente que sai da estrada, outros que capotam, alguns que batem em outro carro. O que é isso, senão a soma da pressa com a falta de planejamento, com o pouco interesse em observar as circunstâncias? E algumas vezes é pura falta de preparo.
Tinha consciência de conseguir transmitir-lhes o que desejava. Sem pressa.
- Só podemos querer fazer algo quando nos sentimos prontos, ensinados, com conhecimento suficiente para analisar as possíveis dificuldades que iremos enfrentar. Se falharmos, erramos em nossa auto-avaliação. Valerá a pena insistirmos, caso cheguemos à conclusão de que temos condições de melhorar. Aí, o tempo necessário passa a ser um detalhe perante a importância que tem para nós o objetivo. Assim, talvez seja no amor, quando nem sempre encontramos a pessoa que desejamos, a retribuir o que por ela sentimos. Ou, sem nos perceber da forma que gostaríamos, sem entender nosso sentimento, sem corresponder à nossa expectativa. Se tivermos a firme impressão de que é a pessoa certa, valerá a pena lutar, enfrentar rivais, sentir-se maior, mostrar-se mais forte, ainda que estejamos arrasados. Mas, até nesta ocasião, haverá um limite que iremos descobrir.
Intercalava as palavras com um gole ou outro do chimarrão:
- Só perceberemos isto quando nos olharmos de fora. Saindo da história, como meros observadores de nós mesmos. Certamente, com tudo que pensemos, e possamos nos esforçar, cometeremos falhas, e muitas. Sofreremos decepções, por vezes leves, por outras, verdadeiros desastres. O tempo irá dar-lhes a verdadeira dimensão. Mas, podemos nos ajudar. Com vontade de olhar à frente, procurando ver adiante, nos preparando para evitar que nos atinjam em pontos que já fomos feridos. Sempre estivemos juntos. Chegou um momento que necessito me refazer. Mas, continuaremos a nos ver e a nos falarmos.

ooo

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Caleidoscópio: cena de uma despedida em Copacabana

Mário Ávila acordara cansado. Mais do que nos últimos dias. Apesar de não ter fumado depois do café, sentia a respiração difícil e suava um pouco. Foi até o janelão da sala e o abriu por inteiro. Cada lado que afastou lhe pareceu ter mais peso do que de costume. Arfava. Olhou para a avenida, atravessou-a com os olhos, chegando à praia que aprendera a amar tanto.
Ali, naquelas areias revoltas pelos pés que iam e vinham em todas as direções, muito conversara com amigos, com os filhos e netos. Observando-os, cada um a seu tempo, muito aprendera com eles nas reações distintas de cada fase da vida, nas palavras, ora cheias de romantismo, euforia ou sentimentalismo. Copacabana exercia um encanto inegável a quem quer que fosse, pelo fulgor da manhã ou pelos belos quadros que a natureza pintava em seus crepúsculos.
Em suas calçadas desenhadas os jovens descobriam o amor, nas areias as primeiras reações da sexualidade sadia, traduzida nos trajes sumários e na postura descontraída. Em suas águas generosas os pescadores penetravam, para delas roubar os peixes muitos, que se ofereciam indefesos. De suas janelas, como ele fazia agora, muitos poetas e cronistas encontraram a inspiração para registrar a vida que irradiava. E mesmo quando palco de luta, proporcionou a seus heróis um cenário do qual poucos além dos Dezoito poderiam se orgulhar de ter utilizado.
Se fosse uma mulher, impossível ter dono. Seria a mais pura, a mais desejada e a mais mundana de todas quanto houvessem existido. Tantos desejos, tantos amores, tantas declarações teria ouvido em sua plácida languidez, assim solta, ao alcance de todos quanto a quisessem ver e tocar. Mesmo quando agredida pelo homem, afoito em dar-lhe novos contornos, ou pela natureza em dias de mau humor, sempre soubera se refazer absoluta, rainha cantada princesa, altiva e cativa de todos quantos a conheceram e amaram, para nunca mais esquecê-la.
A brisa perfumada que penetrava a janela ajudou Mário Ávila a sonhar um pouco, mas não aliviou seu mal-estar. Seu coração parecia bater descompassado. Voltando-se para o espelho, acima do balcão, percebeu-se pálido. Apanhou o telefone e ligou para Márcio.
- Meu filho, não acordei muito bem. Vou chamar meu médico. Gostaria que pudesses vir até aqui...
Do outro lado do fio escutou a preocupação e a surpresa com que Márcio reagia a suas palavras. Tentou tranqüilizá-lo:
- Eu sei que pode ser grave, mas não te assustes. Vem com calma.
Tão logo desligou, discou para o cardiologista. Depois de falar-lhe foi até seu quarto, apanhou dois travesseiros e trouxe-os para o sofá da sala. Colocou os óculos, buscou sua agenda e, recostando-se, começou a escrever com a rapidez que suas frágeis reações permitia. Assim o médico o encontrou ao chegar.
Márcio observava o pai, enquanto o doutor Bezerra o examinava calado e tranqüilo, como era seu costume. Tirou-lhe a pressão, auscultou-o, fez-lhe algumas perguntas. Pediu-lhe que mexesse as mãos, os braços e as pernas. Guardou seus instrumentos. Sentou-se e olhou para Mário e Márcio:
- Meu caro amigo, você está com um início de infarto. O melhor, neste caso, é que o levemos para o hospital. Faremos exames mais detalhados e precisos. Aí, veremos o que é necessário.
Levantou-se, apanhou sua pequena maleta e, agora falando para Márcio, disse:
- Ajude seu pai a fazer tudo com calma. Não lhe permita esforço maior. Não precisa sair correndo, mas não se demore. Estarei no hospital aguardando.
Mário Ávila sentou-se. Abotoou a camisa. Apanhou a agenda e a caneta que havia soltado. Levantou-se.
- Bem, meu filho, vou trocar de roupa e separar um pijama.
Márcio o acompanhou, um passo atrás, tentando observar o pai, para melhor avaliar como poderia estar. Ainda que o tempo tivesse passado, lhe era impossível ver o pai como o homem baqueado que caminhava à sua frente. Acostumara-se a vê-lo um forte.
A idade não lhe roubara a lucidez, nem a decisão clara e precisa. Mesmo fisicamente, nunca demonstrara cansaço, salvo se lhes houvesse escondido reações. Caminhava lépido, falava rápido, seus gestos eram firmes. Seu senso de observação continha a mesma argúcia de sempre, nada deixando escapar, ainda que soubesse guardar suas observações para quando fosse necessário traduzi-las.

Para um homem com mais de setenta anos, mostrava bons músculos e resistência. No clube, dava suas braçadas na piscina, jogava sua meia hora de tênis, comia praticamente de tudo. Só agora, olhando-o a caminhar para seu quarto, mais lento do que lhe era característico, como a medir cada passo, Márcio percebia que o pai envelhecera. E o olhou com um tipo de afeto que nunca se percebera sentir. Uma mistura de respeito, carinho e admiração. Como a admitir para si mesmo que, pela primeira vez, era o pai a necessitar de sua ajuda.

sábado, 3 de agosto de 2013

Caleidoscópio: cenas de um Brasil sombrio


O Brasil continua vivendo sob a égide dos Atos Institucionais do regime militar. Os comunistas estão divididos entre várias tendências. Os Festivais de Música Popular servem de palco para protestos traduzidos em canções, e a televisão cria programas com forte apelo para difundir modismos entre os jovens, numa clara tentativa de desviar sua atenção dos problemas nacionais. Carlos Lacerda, Juscelino e João Goulart, em companhia de outros oposicionistas ao governo, fazem parte agora da Frente Ampla, movimento destinado a lutar contra a ditadura, cujas reuniões se dão no exterior.
Os militares conseguiram uma façanha insólita: reaproximar e reunir os opostos.
Não há como evitar as escaramuças entre estudantes que protestam e as polícias militares e o exército, tantas vezes levado às ruas para exercer a repressão. Exército que deveria nos defender dos agressores de nossa pátria. Os quartéis se transformaram em prisões e algumas de suas acomodações são câmaras de tortura e morte, fortemente resguardadas do povo e da imprensa, esta calada pela censura que lhe é imposta.
A União Nacional de Estudantes ganha dimensão não planejada, reflexo da luta em que estão engajados seus participantes, muitos mortos na rua ou desaparecidos. Toda uma geração chega à maturidade dividida entre os que tentam pensar - e sofrem por isso - e os que se mantém à margem dos acontecimentos.
No Vietname, soldados americanos, sofrendo constantes revezes e protagonizando dantescas cenas de covardia, mantém uma luta sem perspectiva. Pesa a intransigência dos donos do poder mundial, tentando manipular a seu modo os destinos de povos distintos.
O radicalismo mostra as garras. Martin Luther King, líder pacifista negro, é assassinado nos Estados Unidos, o que se repete pouco depois, levando Robert Kennedy, então candidato à presidência do país.
O Comando de Caça aos Comunistas, formado por extremistas de direita, na verdade assassinos comuns disfarçados sob uma sigla, e com a cumplicidade das autoridades, espalha terror em diversas cidades brasileiras. O povo mais simples e menos informado se confunde com a divulgação dos fatos.
A Europa ferve. Na França, estudantes e trabalhadores param o país clamando por mudanças e obrigando De Gaulle a compor-se com conservadores e negociar o apoio do exército a seu governo. Oliveira Salazar, um dos mais antigos ditadores, abandona o governo em Portugal. Sua saúde decadente conseguiu o que o país tentou por décadas sem sucesso. Na Tchecoslováquia, os soviéticos esmagam a Primavera de Praga, movimento liderado por Dubcek, Primeiro-Secretário do Partido Comunista de seu país, que dava início a modificações na vida política e econômica.
As garras do totalitarismo não tem bandeira preferencial. As contradições de todo regime de força são nítidas. Nas guerras, impostas com o pretexto de proteger direitos, idéias ou regimes, países são devastados, gerações são aniquiladas, a natureza destruída, a cultura esquecida e a liberdade manipulada. Nas ditaduras, mesmo não imperando uma guerra declarada, o pensamento é amordaçado, os questionamentos ocultados, as notícias elaboradas de acordo com as conveniências e os direitos redefinidos, na dimensão do considerado permitido. E o direito mais primordial de um povo, qual seja o de poder criar seus líderes, é anulado pela voracidade com que as forças do poder saem à cata de suas sombras.

Engana-se o carrasco, quando executa quem luta por idéias. Eliminou uma arma, esqueceu da munição. O ideal, o sonho de liberdade, a luta pelo direito de trilhar seu caminho, nasce com cada um, mas está além de suas dimensões, ficando nos outros e na história, mesmo após sua morte. É esta munição, volátil e concreta, que atravessa o tempo e perdura para sempre. Porque não está no sangue que pode ser derramado. Mas fica na atitude, no exemplo que não se esquece, na coragem da palavra que vaga em ondas, distribuída e captada por novas gerações.