Há fenômenos que mexem com nossas vidas, alguns com nossas emoções, outros com nosso descanso, alguns que tiram a tranqüilidade, outros que nos ajudam a recuperá-la. Quiçá o chover seja um dos que mais reações ocasionam, e distintas em cada um de nós, viventes. Por exemplo, em mim sempre levou ao pensar, e, quando criança, a longos devaneios.
O chover, sem dúvida, gera alguns incômodos a quem se desloca para trabalhar, ou o faz ao relento. Amanhecer o dia e encontrar um quadro destes, na maioria das vezes, nos obriga a mudar parte de nossos planos. Por vezes trocar de indumentária, municiar-nos de acessórios, calçarmos outros sapatos, usar outros meios de transporte.
E, se a chuva vier acompanhada de baixa temperatura, aumentam nossas necessidades de nos aparelharmos adequadamente. No sul do país, se o vento for ingrediente adicional, chegamos ao clímax. O mal estar se generaliza em nós. Sairemos às ruas com a certeza de que vamos enfrentar uma luta desigual. Luta em que a natureza sairá vencedora.
Bem me recordo de infindas manhãs ou tardes de inverno em Porto Alegre, nas quais, ao concluirmos nossos deveres de casa – assim eram chamados exercícios que recebíamos na escola para nos obrigar a estudar em casa – junto às janelas, cujos vidros tornavam-se embaçados pelo contraste entre as temperaturas interna e externa, desenhávamos a dedo.
Nossa casa, nove irmãos dentro dela, tudo fechado para proteger-nos do frio, da chuva e do vento, transformava-se, qual um grande ambiente de banheiro com água quente ligada por muito tempo. E, após algumas horas, a água escorria em finos filetes, pelo lado de dentro das vidraças, nos atrapalhando, na arte de manter nossas “pinturas” com suas formas originais.
Mas, poucas opções disponíveis para outras atividades, mantínhamo-nos atentos, apenas obrigados a trocar de vidro, e, algumas das vezes, num repente de raiva, a apagar totalmente a figura desenhada. Como, àquele tempo, as casas possuíam grandes janelas, e, cada uma delas, vários vidros, o segredo era apossar-se logo da maior, dispondo de mais “telas” para trabalhar.
Já, no verão, quando caiam os temporais da tarde, com muito vento e água trazidos, principalmente, pelo “lestão”, ao principiarem, nos resguardávamos, afinal grandes árvores eram arrancadas, ou grandes troncos despencavam, além de trovões e raios que rasgavam o céu em assustadores desenhos. Mas, temporais no Guaiba são rápidos. Lestão é o vento terral para quem mora na zona sul da cidade. E, junto com o vento norte, o que traz as chuvas.
Amainando a chuva, nos sobravam a garoa e a água, muita, fluindo pelas bordas das ruas, ainda calçadas com paralelepípedos, o que nos permitia a diversão imediata. Pequenos pedaços de madeira, o mais leve possível, passavam a ser nossos “barcos” nas corredeiras. E, em meio à corrida de pés descalços, acompanhávamos seus movimentos desconexos, evitando que parassem, contidos que fossem por qualquer obstáculo.
Hoje não estou em minha terra natal, hoje tenho filhos e netos, e hoje, desde a noite de ontem chove no Rio de Janeiro. Chove forte, mas não há nem o susto, nem a beleza dos raios e trovões. É uma chuva típica de nosso outono carioca. E que nos leva, já adultos e vividos, a sentir o quanto esta carrega de sentimentos, refletindo a vida que ajuda a gerar, ou, por vezes, sem que o queira, a destruir.
Há períodos em que cai com mais força, como fortes são as paixões humanas, arrebatadoras, por vezes irresponsáveis, e até cruéis. Há momentos em que fica amena, suave, quase imperceptível, qual a lágrima que escapa, no lance do amor, ou do gesto de afeto não correspondido, ainda que a tentemos impedir. Há minutos em que parece se revoltar, e num relance, como que trejeito de quem foi contrariado, da uma pancada, e se retira.
E, a chuva, como os sentimentos, pode deixar seqüelas. Caminhar sob chuva fina e passageira, volta e meia, ocasiona reflexos, com espirros, gripe, sinusites, até deixar-nos acamados. Já, contraditoriamente, ser pego por um indomável temporal, andar sob vento forte, pode nada causar. São similares, analógicas, as sobras de paixões, repentinas, pungentes, profundas, envolventes, ou as quase não percebidas, mas insinuantes, cujos estragos são reconhecidos só depois que estas se diluem, deixando em nós o sentimento e a dimensão da perda.
De toda forma, em nossos envolvimentos, quando somos surpreendidos, por cair nas armadilhas do amor, fundamental, termos forças e recursos de mente para sairmos dos redemoinhos. Ao momento em que as chuvas iniciam seu processo de retirada, nuvens menos carregadas, vislumbrando o sol, se atentos, conseguimos captar o arco íris. É por ai que hoje, neste dia de outono carioca, me debruço sobre os pensamentos, e fico a divagar sobre o que somos cada um, e sobre nossas reações, quanto a receber, entender, e decifrar a chuva.... os sentimentos... a vida.