Elenita, juntamente com seis
companheiros, rodava na noite, em direção ao Gasômetro. Iriam reunir-se para
definir os últimos passos da próxima ação. Sabiam que não lhes seria fácil
atingir os objetivos. Planejavam entrar no depósito de armas de um quartel, com
o auxílio de dois soldados da guarda, na verdade, companheiros de luta.
Descendo a Riachuelo pararam os carros próximo ao Colégio das Dores, com
diferença de alguns minutos um do outro, tomando o cuidado de deixá-los em
locais e sentidos opostos. Caminharam em grupos de três, descendo a General
Portinho no pequeno trecho que os levaria até a Fernando Machado.
Ali, na segunda casa à direita, teriam
alguém a esperá-los para escutar sua senha.
O primeiro grupo, do qual Elenita fazia parte, chegou à frente da casa.
Deram o toque combinado na porta. Demoraram-se alguns segundos sem obter
resposta. Escutaram o que lhes pareceu passos fortes na rua, não demorando a se
transformarem em vultos que se aproximavam rápido. Ouviram quem julgaram ser o
Rodnei, um negro possante, voz de barítono, companheiro de várias refregas,
gritar:
-Retirar! Fomos traídos!
Não houve tempo para reagirem. Uma
primeira rajada de tiros atirou os três contra a parede. Elenita caiu, quase
encostada à porta da casa. Sentia que um dos seios lhe fora desfeito. Levou a
mão ao peito encontrando o calor do sangue que escorria dos ferimentos. A seu
lado, tentando apanhar a arma, Artur se mexeu rápido, entre gemendo e resmungando
alguma coisa. Atirou e acertou um dos seus agressores. Artur tinha boa
pontaria. O homem caiu morto, a cabeça com um grande buraco no que fora seu
rosto. Veio a segunda rajada, de muito perto, quase as armas os tocando,
jogando seus corpos em movimentos desconexos forçados pelo impacto.
Numa fração de tempo, que o misto de
consciente e inconsciente não lhe permitiu avaliar, Elenita viu passar os
rostos de Carlos, Ricardo, Paulo, Catita, seu pai. Viu as crianças da fazenda,
em fila, entrando na sala de aula. Ora mais claras, ora esmaecidas, as figuras
desfilavam por sua mente, numa velocidade atroz e, ao mesmo tempo, como se
estivessem em câmara lenta. Ouviu quando um dos algozes falou:
-Tenho certeza que é ela. Vou conferir.
Abaixou-se sobre seu corpo, virando-lhe
o rosto de modo que pudesse vê-lo. O revólver encostado entre o pescoço e o
queixo de Elenita. Aproximou seu rosto do dela. Sorriu, depois gargalhando.
-Viu só? É ela mesma.
Num esforço para reunir forças que já
não tinha, Elenita abriu os olhos e viu quem era. Havia descido o capuz.
Rafael, companheiro de algumas reuniões, apresentado como vindo de São Paulo,
do grupo de Marighella. Quase não podia mexer a boca. A pressão do cano do
revólver a impedia de respirar o pouco que conseguia, arfando, quase no
estertor. Ainda assim, num impulso que lhe veio das entranhas, cuspiu em seu
rosto, manchando-o do sangue que lhe chegava à garganta.
-Filho da puta! Traidor!
Foi o que conseguiu dizer antes que ele
apertasse o gatilho.
-Vamos. Rápido. Tragam o caminhão,
falou o militar depois de baleá-la.
Estacionaram junto da esquina. O motor
em movimento, jogaram os corpos, inclusive o do militar que morrera, sobre a
carroceria. Isso feito, subiram todos à cabine e saíram, descendo a Vasco Alves
até a Washington Luiz. Em trinta minutos chegaram à ponte, naquela hora
totalmente vazia de tráfego. Apagaram as luzes dos veículos. Dois homens
tomaram distância de uns cinqüenta metros, cada um para um lado, ficando em guarda. Dois outros
retiravam os corpos, depositando-os no chão.
-Quem é o que matou o Fonseca?
-Este aqui Capitão, disse um deles,
apontando para o cadáver desfigurado de Artur.
-Muito bem. Corte seus bagos. E não
esqueça de furar todos antes de jogá-los no rio. Se não furar, podem boiar.
-Sim Capitão Volnei.